O mundo das vítimas e dos pobres tem direito à sua utopia

Serge Bozon põe uma professora, Isabelle Huppert, a reconstruir-se – reconstruindo, à sua maneira incendiária, uma hipótese de relação com o subúrbio, de que se aproxima através de um aluno impossível. Madame Hyde é a ficção da atracção da França branca pela França mestiça: ou seja, um filme político.

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Madame Hyde é um filme social rarefeito pela fábula. Uma professora que é um fracasso na escola do subúrbio, Madame Géquil (Isabelle Huppert), é torturada pelos alunos. Um dia torna-se fosforescente, transforma-se em Madame Hyde, e “toca” no insolente Malik (Adda Senani). A sua luminescência queima-o: Malik abre-se, enfim, ao conhecimento. Que não é coisa benigna: os gestos de Géquil/Hyde, por exemplo, são tanto de agressão como de transmissão.

É uma comédia burlesca – metafísica, se a palavra não for pesada. Pensamos em anteriores filmes de Serge Bozon, La France (2007), em que uma mulher se faz passar por homem na frente de batalha da Primeira Guerra Mundial, ou Tip Top (2013), em que duas investigadoras da polícia investigam a propria polícia… também em Madame Hyde o olhar das personagens vagueia, pressentindo harmonias que dificilmente encontram nas suas vidas: eis a razão da atracção de uma professora branca pela França mestiça do subúrbio. Madame Hyde é também um filme melancólico. E político.

É por aqui que começamos a conversa com Serge Bozon, 45 anos, homem que entusiasma a abstracção do seu discurso com uma perigosa coreografia física: um perigo à mesa, diante de chás e cervejas os gestos de transmissão podem ter o efeito de agressão.

Em Madame Hyde, como em Tip Top, há o “nós” e os “outros”, uma França branca e uma França mestiça. Mas não é simples oposição; a personagem de Isabelle Huppert olha de longe para o subúrbio, para a Cité 2000, como uma “possibilidade”... quase utópica.
Sim, completamente. Constato algo de banal, a oposição entre uma França branca e uma França colorida, entre a França das cidades e a dos subúrbios. Mas quero fazer uma ficção, não um filme social de reportagem das dificuldades reais de cada personagem. Quero inventar coisas, para que seja mais surpreendente – e, por isso, talvez mais político.

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Serge Bozon, 45 anos, chega finalmente ao circuito comercial português com a sua quinta longa-metragem Franck CRUSIAUX/Gamma-Rapho/Getty Images

Em Tip Top todos os brancos estão obcecados pelos árabes. Nas mulheres, desde logo, sexualmente: o marido da personagem de Isabelle Huppert é árabe, o marido de Sandrine Kiberlain é árabe [Huppert e Kiberlain são duas inspectoras que investigam a morte de um informador da polícia de origem argelina]. Há quem aprenda árabe para ler o Corão. Em Madame Hyde é igual. A personagem de Isabelle é um fracasso, é uma professora que não consegue ensinar, mas à noite põe-se a olhar para o subúrbio. Na sua relação com Malik, que é o pior aluno da escola, ela vai conseguir que ele se abra à Ciência. Isso na vida passa-se em várias fases, no filme está concentrado numa aula de Geometria – as coisas tornam-se mais intensas assim, mais simples e elegantes. Não é realista, mas torna a perturbação mais clara, logo a superação também é mais pura. Isto para dizer que quero tratar questões sociais como o racismo ou o subúrbio não como um assunto de vítimas, dos pobres, o que é o lugar-comum da ficção, mas para fazer esses mundos serem também portadores de utopias.

Os espaços são fundamentais. É neles, no subúrbio, que tudo se desencadeia, é para eles que a personagem de Isabelle olha como possibilidade.
O que atrai a ficção é esse subúrbio, onde ela acaba por ir. E é essa a transformação, ir até ao fim da sua atracção. Como quem vai atrás de uma luz, seguindo Malik. A relação do rap com o subúrbio, no filme, também é particular; é um rap que não é realista, é pop, cheio de sentimento. Não me interessava um rap que imitasse “o rap do subúrbio”, mas um rap que, sendo “contra a escola” – e o meu filme é “pela escola” –, guardasse um lado juvenil, quase elegíaco, como a pop. Para resumir: o subúrbio é não só um terreno ideal para inventar personagens que não sejam vítimas mas também um terreno em que do ponto de vista fílmico há muito a fazer.

Numa conversa com o cineasta Bruno Dumont a propósito de Ma Loute (2016), filme em que utilizou vedetas e não-profissionais, ele falava do fascínio, e do medo, dos primeiros em relação aos segundos. Admitia que tinha utilizado isso como eco da luta de classes.
Compreendo o que ele diz. Em Madame Hyde, à parte Isabelle Huppert, Romain Duris e José Garcia, os outros não eram actores. Nem eram amadores. Por que é que os actores têm medo? Um não-actor, como não está à vontade, pode sentir-se intimidado. E quando as pessoas são tímidas e têm de fazer alguma coisa, dá-se uma excitação e uma inquietude mais difíceis de encontrar por um actor, que está muito bem nos seus sapatinhos. Os actores podem invejar isso. Mas atenção, há uma coisa desagradável em Ma Loute: temos a impressão de que Dumont está a gozar com os actores. Disso não gosto – às vezes sente-se que goza com Juliette Binoche e que ela interpreta mal e é ridícula. No meu filme não se trata de ridicularizar Huppert através dos proletários não-actores. Como Huppert é uma actriz sempre angustiada, nunca descontraída, o que se passa entre a timidez e a reserva de um não-actor e a tensão dela é coisa do mesmo nível. Não há nada no filme contra o estatuto de star de Isabelle, o que há no filme é tudo a favor do que há de mais frágil em Isabelle. Em Tip Top ela era muito assertiva, aqui é muito frágil – nessa nova fragilidade pode haver um acordo com a fragilidade dos não-actores, não uma oposição.

Numa entrevista na estreia de Elle (2016), Isabelle Huppert disse-me: “interpreto cada vez menos”. E que por isso o filme podia ser visto como um documentário de uma actriz no plateau a reagir.
De acordo. Mas esse não é o meu filme.

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Precisamente.
Quando fiz Madame Hyde já a conhecia, houve menos tensão do que em Tip Top. Em França, Isabelle é associada a papéis autoritários, o que pode ir até à violência e ao sadomasoquismo. Queria pegar nela de forma oposta, queria-a frágil, porque fracassa profissionalmente, tímida, humilhada, etc. Vai transformar-se, mas não de maneira espectacular. Não se transforma em super-professora: continua na fragilidade, e acaba por colapsar. Procurava um lugar para Isabelle em que ela fizesse gestos que não fossem os seus, em que estivesse com menos munições. No início de Tip Top, na primeira semana de rodagem, ela estava contrafeita. Dou direcções precisas. Para uma cena, disse-lhe: “Estás aqui, depois vais para a esquerda, olhas para ali, ali aproximas-te...”. Ela respondeu: “Não sou uma marioneta. Tens de me deixar encontrar a forma de me movimentar no espaço, de mexer o meu corpo, e em função disso fazes a mise-en scène.” Eu retorqui: “Não”. E “não” porque pensei na mise en scène durante quatro anos e não quero mexer nela, “não” porque pensei coisas para a personagem na cena. E “não” porque precisamente queria que ela se sentisse constrangida no jogo. Quando chegou a vez de Madame Hyde ela já sabia isso, já não houve esse problema entre nós.

Filmo em 35 milímetros, não se pode ver o que se faz, não há rushes, é à antiga. Fazemos poucos takes, porque a película é cara. Trabalho com uma definição de luz para cada plano – o que significa que a cada mudança de plano tudo tem de ser mudado. Isabelle adora ensaios e eu sou contra, porque procuro preservar o mistério. Foi então preciso que Isabelle se libertasse do que tinha a ver com a imagem, com a aparência. E o que se passou é que foi ela que me deu coisas e eu reagi em função delas. Não tenho teorias nem método, foi caso a caso. Na última cena de aula, ela deu-me muito, muito. Fiquei comovido. Tinha-lhe dito: “É preciso que caias e que te levantes, que caias e que te levantes, é preciso que a personagem tente o impossível, continuar a sua aula, o que não vai conseguir” – e ela investiu isso de um desespero absoluto.

Falemos de gestos. Há aquela sequência em que Malik simula o bigode de Hitler e a professora levanta a mão. Um gesto...
... bizarro.

Porque tanto é de agressão como parece querer transmitir algo...
É isso mesmo.

Nisso Madame Hyde é cinema mudo. Há algo, em Malik e na professora, que nos reenvia para os “monstros” de Tod Browning, para o Freaks, por exemplo.
Adoro isso. Existe essa ideia de monstruosidade nas personagens: num caso é exterior, física, no caso dela é uma monstruosidade secreta. No romance [O Estranho Caso do Dr. Jeckyll e de Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson], Hyde é tudo o que Jeckyll reprime: a sexualidade, a violência. Madame Hyde não é isso. Mesmo no caso da primeira cena em que ela “mata”, é para proteger Malik. A monstruosidade no filme não serve a distinção entre Bem e Mal, espelha antes uma fragilidade. A fraqueza de Malik são as suas pernas; a de Marie Géquil é ser um fracasso como professora. Isabelle, e é por isso que adoro trabalhar com ela e que vou voltar a fazer um filme com ela, é uma actriz que tem uma forma de estilizar os gestos. Não são gestos naturais, que se diriam do quotidiano, que respiram uma evidência do quotidiano. São gestos estranhos – há sempre um lado de excentricidade, como no cinema mudo. Não sei de onde é que isso lhe vem, eu próprio me surpreendo, e é por aí que muito da personagem não passa pelo "bla bla bla" ou pelo argumento. Há coisas que Isabelle inventa sozinha. Às vezes sou eu que lhe dou o ponto de partida – esse gesto de que falou, que tem de facto tanto de agressão como de continuidade, fui eu que propus.

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Madame Géquil (Isabelle Huppert) é torturada pelos alunos — até que um dia se transforma em Madame Hyde e “toca” no insolente Malik (Adda Senani), que se abre enfim ao conhecimento

Mas sobre o mudo, sobre essa conexão [James] Whale/Browning: é verdade, mas enveredaria mais pelo lado burlesco.

Um burlesco – grande palavra agora – metafísico.
Sim, menos trivial.

As personagem olham sempre para longe...
É mais sonhador...

Há um lado melancólico no seu cinema. As personagens desejam sempre estar noutro lugar, o olhar delas vagueia com a consciência de outra dimensão, a que não se consegue chegar...
Vejo o que quer dizer. Os meus filmes são diferentes, espero nunca repetir o mesmo, mas em cada um há o apelo de um longínquo. Há uma busca, se calhar um sentimento de perda. Estou a improvisar, porque nunca tinha pensado nisso... mas sim, a ideia de um exterior inacessível com uma harmonia própria que dificilmente as personagens encontram nas suas vidas.

Onde é que se coloca no cinema francês, território que foi demarcado nos anos 30 pelo “realismo”?
Os anos 30 e os anos 70 foram as décadas maiores do cinema francês. Porquê os anos 30? Porque, e tal como em Hollywood, onde isso era mais visível, a noção de género ainda não estava fixada, nem a gramática de cada um dos códigos, tudo se comunicava. Um mesmo filme podia ser comédia musical, filme de aventuras, filme erótico, e a alegria efusiva de tudo misturar. Pense em Steamboat Round the Bend [1935], de John Ford: é uma comédia sobre o Mississípi, é filme étnico, tudo é possível. Isso existia no cinema francês, isso existia na cabeça de alguém como Julien Duvivier [1896-1967], com um misto de excentricidade e de realismo bruto, o mundo parecendo caótico.

Nos anos 70, que adoro, por razões políticas e sociais, houve a ressaca das esperanças revolucionárias, que fez com que as pessoas tivessem ficado sozinhas. Não é por acaso que Eustache, Rohmer, Godard, Rivette fazem os seus melhores filmes nessa década: estavam todos em momentos de solidão, tiveram de se voltar para si próprios para encontrarem na raiva, na solidão, os seus recursos. Pegue em Une Mulher é Uma Mulher [1961], de Godard, ou em Bando à Parte [1964], e a seguir em Número Dois [1975] – aqui já não há nada do “somos jovens e belos e andamos pelos museus, pomos música na jukebox e engatamo-nos”; há algo de mais duro. Essa dureza dá um lado mais comovente.

Este é o cinema de que gosto. De qual é que venho? Tenho gostos clássicos: diria Guitry, Pagnol, Renoir, Jacques Becker, Bresson, Tati um pouco; toda a Nouvelle Vague, e toda a escola [das produções] Diagonale [Jean-Claude] Biette, [Paul] Vecchialli... Há cineastas recentes de quem me sinto próximo: Patricia Mazuy, Alain Guiraudie. Quando tinha 25 anos, escrevia para uma revista, La Lettre du cinéma, e tínhamos – eu, Vincent Dieutre, Pierre Léon, Axelle Ropert [a sua argumentista] – uma noção de grupo, um pouco como a Nouvelle Vague. Queríamos fazer filmes e fizemos. E dispersámo-nos. Mas ficámos marcados pela ideia de que se fazemos protótipos, ou seja filmes estilizados, é porque queremos ficar próximos de um cinema popular: a estilização não vem do cinema de arte e ensaio. O que pode haver de mais estilizado do que um peplum? Quando vemos Zombie [1948], do [Jacques] Tourneur... é estilizado, é fantástico sonhador, é fantástico atmosférico, mas ele fazia isso para o público mais popular. Tenho um amor enorme pelo cinema popular, sobretudo quando é mais delirante, como a série B. As cenas à noite de Madame Hyde foram feitas a pensar no giallo, no cinema de terror italiano, que tinha uma sofisticação na luz e na colocação dos actores em campo mas não era cinema de arte e ensaio.

Quando alguém me diz que Madame Hyde é original, que não se sabe de onde vem, penso: é um filme sobre o subúrbio, é um filme sobre a escola que questiona o que é ensinar, é um filme em que há elementos fantásticos, e lembro-me que Brisseau fez isto, em De Bruit et de Fureur [1988], que vi em miúdo, e que era poesia em filme... mas aí ficamos no círculo da arte, e o meu objectivo, como em O Menino Selvagem [1970], do Truffaut, é sair do círculo da arte e mostrar o que é aprender. No caso do Truffaut é simples: é aprender a ler, a escrever e a falar. No caso de Madame Hyde tudo se passa mais tarde, trata-se de aprender a raciocinar, a argumentar, a colocar um “portanto” entre cada frase, a resolver um problema sem números, só pela reflexão. Não é trivial.

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La France (2007): em plena Primeira Guerra Mundial, uma mulher veste-se de homem e parte para a frente de batalha à procura do marido
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Tip Top (2013): duas investigadoras da polícia (Sandrine Kiberlain e Isabelle Huppert) investigam a própria polícia

La France podia ser o título dos outros filmes. As suas longas tratam do exército, da polícia, da escola. Imagino que não esteja a picar o ponto das instituições...
[risos] Não, se não seria Frederick Wiseman. A minha co-argumentista é que tem as ideias. A minha “coisa” é a mise-en-scène, a montagem, não sou forte em argumento, Nunca sou eu a encontrar o ponto de partida, é ela. Sem ela não seria capaz de fazer filmes. Sim, leio os jornais todos os dias, leio o Libé [Libération]. Mas o meu ponto de vista é outro na questão do político e do social. Olhemos para Clint Eastwood, para um filme como Mystic River [2003], que frequentemente é pesado no seu negrume. De repente ele faz Grand Torino [2008], em que há um único branco num bairro asiático, e reaparece uma frescura que tinha perdido, que havia em A Última Canção [1982], reaparecem um humor e um sentido do presente... Só pelo facto de a personagem não saber quais os rituais daquela comunidade, quais as palavras a dizer. É o mesmo que faço ao misturar Isabelle Huppert e um actor que não é um actor. Engendra um prazer de cinema que não acontece quando ficamos no círculo habitual.

É uma forma à parte de fazer político e social no cinema francês.
Sim, seria menos à parte se estivesse em Portugal. Se pensarmos num filme como A Fábrica de Nada [Pedro Pinho, 2017], e na sua dimensão de comédia musical, mesmo que sejam três minutos num filme de três horas, ou naquilo que Miguel Gomes ensaiou em As Mil e uma Noites [2015], nas variações possíveis que não opõem cinema social a cinema popular... Não há um academismo no cinema português.

Cada cineasta é um protótipo, isso oferece resistência à fixação de uma narrativa...
Muito justo. Já em França há demasiados filmes demasiado parecidos. Estou isolado, sim, em todo o caso tento evitar a oposição entre arte e ensaio, entre o cinema cultural chique e o cinema comercial. Não é que os meus filmes façam milhões; falo em comercial na relação com as personagem, com a comicidade, com a ingenuidade e com os actores. Tento que os filmes saiam desse tipo de fronteiras. Até porque, se há convenções no cinema comercial, também as há no cinema de arte e ensaio. Por exemplo, há vários hoje a fazerem um sub-[Pedro] Costa.

A metamorfose é central nos seus filmes. Há sempre um ser que se transforma, quase sempre uma mulher. Em que “laboratório” é que as coisas, as ideias, lhe surgem ou acontecem? Começa pela ideia de uma mulher a transformar-se?
Não, depende. É a Axelle Ropert que me propõe: “Isto interessa-te?”. Escrevo sempre com a Axelle, e passa-se como se passa com Isabelle no plateau: não fico horas a falar da personagem, não atiro referências; quanto muito isso passa-se num segundo instante, ou quando o filme acaba e começo a reflectir. É só a partir da montagem que começo a ser analítico. Antes é excitação, é adrenalina. Na altura de La France eu não estava interessado no subúrbio e nas questões dos árabes, hoje estou e trata-se de encontrar uma ideia que toque nesses assuntos.

Para Madame Hyde, Axelle propôs-me Stevenson, nos nossos dias, no subúrbio, e com uma mulher. Foi isso que me excitou. O mesmo para Tip Top. Os policiais assentam numa rivalidade mimética entre o assassino e o polícia, em que o assassino está rodeado de mulheres e de droga e o polícia é melancólico. É um cinema de macho triste, homossexual reprimido e deprimido. Por isso a ideia em Tip Top era fazer um policial com mulheres, em que elas eram não só a polícia – logo, sem possibilidade de rivalidade mimética com o assassino – como eram a polícia da polícia, porque o trabalho delas é investigar a polícia.

Sobre Madame Hyde... porquê uma mulher? Porque queria trabalhar com Isabelle mas também porque a transformação tornava-se mais romanesca: há uma fragilidade à partida. E porque há uma inversão: José Garcia, o marido, é o homem de casa, é ele que cozinha e que trata dela, o que dá um lado de excentricidade. Se fosse a mulher a dona-de-casa e a personagem em transformação o homem, seria uma coisa mais macho.

Mas é verdade que a metamorfose estava na base de La France [uma mulher veste-se de homem e parte para a frente, na Primeira Guerra Mundial, ao encontro do marido]. Axelle propôs: “O que achas de um filme de guerra em que uma mulher se traveste?”. Nunca tinha reflectido muito nisto, e agora reparo que o meu próximo projecto é uma variação contemporânea de Don Juan, em comédia musical.

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