Médio Oriente, os “novos Balcãs”
O Médio Oriente não é o umbigo do mundo. Mas permanece um barril de pólvora, propício a derrapagens que podem degenerar numa guerra regional. Esta semana tivemos um exemplo, entre Israel e Irão. Faltava Trump para aumentar as complicações. Faz lembrar os Balcãs do início do século XX, onde começaram guerras que ninguém queria.
1. Após dias de elevada tensão, os serviços secretos israelitas disseram ontem que está terminado o primeiro round do choque com o Irão e que é improvável um novo confronto e represálias entre os dois países na Síria, nos próximos tempos, mas que o conflito continua e pode reacender-se. Foi um ensaio de dissuasão mútua, que chamou a atenção para os riscos de uma guerra regional.
“Israel e o Irão correm para o abismo”, preveniu o analista israelita Ron Ben-Yishai. Disparo de rockets sobre os Golã e a musculada resposta israelita; a refirmação das suas “linha vermelhas”; uma volátil situação em Gaza; a mudança da embaixada americana para Jerusalém; e a proximidade da comemoração e das manifestações palestinianas do Dia da Naqba — 14 de Maio, começo do êxodo árabe e aniversário da independência de Israel. “Nem Israel nem o Irão desejam uma escalada, mas a situação pode facilmente degenerar numa espiral fora do controlo”, conclui.
Vários autores têm lembrado que, nos dias de hoje, o Médio Oriente faz lembrar os Balcãs do início do século passado, onde começaram guerras que ninguém queria. Não é o umbigo do mundo. O petróleo já não é o que era. O centro de gravidade do mundo deslocou-se para o Pacífico. Mas permanece, para o usar o lugar-comum, um barril de pólvora, propício a derrapagens que podem sempre degenerar numa guerra regional. As potências da região, e não apenas Israel, tendem a raciocinar em termos de “interesses vitais” ou “existenciais”, o que reduz as margens de negociação e dramatiza o quadro. Faltava Donald Trump para aumentar o clima de tensão.
2. A decisão de denunciar o acordo nuclear com o Irão terá muitas leituras, a primeira das quais essencialmente americana, ou seja, a vontade de se livrar de todos os compromissos internacionais herdados da Administração Obama: o acordo da Parceria Trans-Pacífico de comércio livre, os acordos de Paris sobre o clima e, agora, o acordo nuclear com o Irão. “A Administração Trump considera-se doravante com as mãos livres para fazer valer, sem vínculos e mediações, a potência americana”, escreve o analista italiano Roberto Menotti. E, ao mesmo tempo, tornar patente a impotência dos aliados europeus.
Outra leitura foi feita no PÚBLICO pelo politólogo Carlos Gaspar, que associa os processos da Coreia do Norte e do Irão: “Em ambos os casos, a nova estratégia norte-americana deixou de ter como objectivo pôr em causa os regimes políticos da Coreia do Norte e do Irão: um acordo com Kim consolida o seu regime comunista e serve para demonstrar que Washington desistiu de minar a teocracia xiita, o que é um incentivo para uma nova negociação.”
Trump e a sua equipa não se limitam a romper o acordo. Vão impor pesadas sanções ao Irão, com as quais pensam colocar de joelhos o regime dos ayatollah e, ao mesmo tempo, pôr em xeque o comércio e os investimentos da Europa no Irão. O “falcão” John Bolton, conselheiro de Segurança Nacional, diz que os EUA aprenderam uma lição nos últimos anos: “Apenas negociar numa posição de força.” Para isso servem as sanções. A política internacional torna-se um jogo de soma zero: o que um ganha o outro perde.
Depois de rebentar o acordo nuclear, observa a analista americana Suzanne Malonney, da Brookings Institution, Trump não tem, pura e simplesmente, nenhuma estratégia para forçar ou persuadir o Irão a fazer novas concessões.
3. É útil voltar atrás e lembrar o cálculo geopolítico que esteve por trás do acordo nuclear de 2015. Após o começo das Primaveras Árabes, os estrategos americanos vislumbravam uma perda de influência dos países árabes, decorrente da erosão dos seus Estados e da perda de legitimidade política. Os árabes viam com estupefacção que, das três potências que permaneciam relevantes — Turquia, Irão e Israel — nenhuma era árabe. Por outro lado, o Irão surgia como problema mas também parte da solução. Uma cooperação estratégica com o Irão não só contribuiria para favorecer as forças reformistas, no plano interno, como deveria ajudar a esbater a grande fractura entre Estados sunitas e xiitas que incendeia a região e dilacera as sociedades.
Em Outubro de 2014, um grupo de veteranos da política externa americana publicou um documento — The Iran Project — em que justificava a política iraniana de Barack Obama. Escreviam: “Há um laço muito forte entre a resolução da questão nuclear e a capacidade de a América desempenhar um papel num Médio Oriente em rápida mutação.” Este raciocínio não é independente da vontade americana de desinvestir na região para recentrar a sua política no Pacífico, com o “pivot asiático”.
A invasão americana do Iraque, em 2003, levou os xiitas ao poder e alargou a margem de manobra de Teerão. Depois, as Primaveras Árabes abriram ao Irão uma nova oportunidade para expandir a sua influência, designadamente na Síria. Note-se que o Irão era um aliado da Síria e foram os países sunitas, designadamente a Arábia Saudita e o Qatar, que “internacionalizaram” a guerra civil síria. No fim, quem colheu os frutos foi o Irão.
4. A eleição de Donald Trump, em 2016, marca um ponto de viragem radical. O Irão passa de novo a inimigo e volta a ser nomeado pela Casa Branca como Estado “pária” e “terrorista”, com o entusiástico apoio de Israel e da Arábia Saudita. Riad, sob a batuta do príncipe Mohammad bin Salman, tenta organizar uma frente anti-Irão, incentivada por Trump. E passa a ter a ambição de ganhar a hegemonia regional.
Não está no horizonte uma guerra entre iranianos e sauditas. Ambos funcionam através dos seus peões, os chamados “proxies”, em conflitos por “procuração”, como o do Iémen. A Síria é o principal e mais perigoso tabuleiro. Observa o especialista francês Pierre Razoux que nem Israel nem o Irão querem lançar-se numa guerra de que resultaria o caos e que poderia exceder o quadro regional. Teerão dá prioridade a consolidar os seus ganhos na Síria e no Líbano e aposta numa estratégia de dissuasão mútua com os israelitas. O Hezbollah funciona como uma força de dissuasão perante Israel. É isto o que os israelitas se recusam a aceitar, considerando que se trata de uma “questão vital” para a sua segurança. Não é retórica.
Uma nota final. No Coreia do Norte, Kim Jong-il e Donald Trump praticaram uma política “à beira do abismo” e de “fúria e fogo” que se poderá transformar num futuro acordo. As circunstâncias são diferentes. Havia dois adversários e a presença da China. No Médio Oriente há múltiplos actores, entre potências e peões, que facilmente podem lançar a referida “espiral fora do controlo”. Repetir no Médio Oriente o “jogo do abismo” não é boa ideia.