Irão e Coreia do Norte: decisões nucleares à vista
Está instalado um clima de máxima desconfiança entre os EUA e o Irão. É quase inevitável projectar-se sobre o programa nuclear da Coreia do Norte. Se não for assim será algo de extraordinariamente novo na política internacional.
1. O mês de Maio de 2018 pode ficar marcado pelas questões nucleares do Irão e da Coreia do Norte. O contexto é curioso e algo paradoxal. Em finais de Abril instalou-se uma vaga de optimismo sobre a possibilidade de um acordo relativo ao programa nuclear da Coreia do Norte (e até sobre a reunificação das duas Coreias). Contrasta, flagrantemente, com o pessimismo e a apreensão gerada pela grave crise do Verão de 2017. Do encontro entre Kim Jong-un (Coreia do Norte) e Moon Jae-in (Coreia do Sul), na zona desmilitarizada de separação, resultou uma declaração conjunta. Nesse texto, ambos afirmavam “perante o seu povo de 80 milhões de pessoas e perante o mundo inteiro, que não haverá mais guerra na Península da Coreia”. Afirmavam, ainda, estar empenhados em prosseguir esforços conjuntos com vista a uma “total desnuclearização”. (Ver “The Panmunjom Declaration for Peace, Prosperity and Unification of the Korean Peninsula” in BBC 27/04/2018). O tom cordial dessas declarações e o optimismo que geraram a nível internacional contrasta, agora, com outra questão nuclear que se reabriu: a do Irão. Nos últimos tempos têm surgido múltiplos ataques ao acordo feitos pelo Presidente dos EUA, Donald Trump. Pode estar em curso o processo que levará, de uma forma ou de outra, ao seu abandono pelos norte-americanos (restando saber o que os outros signatários, nomeadamente a China e a Rússia, tencionam fazer). Isso ocorrerá se voltarem a ser aplicadas sanções económicas anteriormente suspensas e/ou se for exigida uma renegociação em termos inaceitáveis para os iranianos. Importa, assim, colocar em paralelo os dois casos para perceber como estes se interligam e as consequências internacionais que daí podem resultar.
2. Vejamos primeiro o caso do Irão. Após mais de uma década de tensões políticas e de impasse negocial, em 2015 foi efectuado um acordo internacional para evitar o uso do nuclear para fins militares. Envolveu os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas (EUA, Rússia, China, França e Reino Unido) e ainda a Alemanha e a União Europeia — informalmente, o P5 +1 e a União Europeia. (Ver Conselho Europeu / Conselho da União Europeia, “Plano de Acção Conjunto Global e medidas restritivas”). Em troca de uma não prossecução do programa nuclear para fins militares — permitindo, no entanto, o uso limitado do nuclear para fins civis —, o acordo previu um levantamento gradual das sanções que tinham sido impostas ao Irão. Para Barack Obama e John Kerry foi uma negociação diplomática particularmente difícil (os acontecimentos da revolução iraniana de 1978/1979 ainda estão bem presentes na memória dos norte-americanos), mas que garantia a paz no Médio Oriente. Todavia, internamente, sempre foi contestado pelo Partido Republicano. No plano internacional, desagradou também aos países árabes sunitas, os principais aliados dos EUA no Médio Oriente, em especial à Arábia Saudita. Estão envolvidos numa luta pela supremacia com o Irão, em particular nas guerras da Síria e do Iémen. Para além dos árabes sunitas foi duramente contestado por Benjamin Netanyahu, Primeiro-Ministro de Israel, que o qualificou como “erro histórico para o mundo”.
3. Abandonar o acordo nuclear feito pelo P5+1 e União Europeia com o Irão envia a “mensagem certa” à Coreia do Norte antes das negociações sobre o seu programa nuclear. É assim que Donald Trump vê o impacto de uma possível denúncia unilateral. Na sua óptica, o acordo com o Irão é um mau exemplo para o programa nuclear da Coreia do Norte. Entre os vários argumentos usados contra esse “horrível acordo” — sobre o qual tem mostrado um enorme cepticismo quanto à sua eficácia —, está o seu período temporal limitado. Passados alguns anos o Irão ficará “livre para ir em frente e criar armas nucleares. Isso não é aceitável". (Ver “Trump: Killing Iran nuclear deal will send 'right message' to North Korea ahead of talks” in USA Today, 30/04/208) Numa abordagem similar, o Primeiro-Ministro israelita afirmou ter na sua posse documentos comprovativos de um programa nuclear paralelo, com o objectivo de produzir armamento nuclear. Todavia, os dados agora revelados parecem ser anteriores à realização do acordo feito em Julho de 2015. (Ver “Ex-Mossad chief says Netanyahu’s show on Iran had ‘nothing new’“ in Times of Israel, 2/05/2018). A ser assim, não comprovam a sua violação. Contribuem é para acentuar a desconfiança já instalada entre as partes sobre a boa-fé no seu cumprimento. E aumentam as dúvidas sobre as intenções futuras do Irão quanto ao nuclear, mas isso é sempre algo do domínio da subjectividade.
4. Se o acordo efectuado com o Irão é um mau acordo e não serve para a Coreia do Norte, já o acordo feito com a Líbia parece ser o modelo preferido pelo governo dos EUA. John Bolton, o actual conselheiro de segurança nacional de Donald Trump, afirmou que uma negociação — tal como foi efectuada no passado com Muammar Kadhafi —, poderia ser um modelo para abordar o problema da Coreia do Norte. Mas o que é apresentado um caso de sucesso de desarmamento nuclear por John Bolton certamente terá outra leitura por Kim Jong-un. (Ver “Libya as a Model for Disarmament? North Korea May See It Very Differently” in NYT, 29/04/2018). Muammar Kadhafi foi deposto e morto em 2011, na sequência das revoltas da chamada “Primavera Árabe”. Na altura, as potências ocidentais decidiram intervir na Líbia ao lado dos rebeldes. (Oficialmente, apenas com o objectivo de criar uma zona de exclusão no espaço aéreo líbio, nos termos de Resolução 1973 do Conselho de Segurança das Nações Unidas de 17 de Março de 2011). Face a esta experiência, a ilacção mais óbvia para Kim Jong-un é que o acordo feito por Kadhafi para abandonar o seu programa nuclear é um modelo — só que um modelo para aquilo que nunca deverá aceitar. (Ver Arms Control Association, “Chronology of Libya's Disarmament and Relations with the United States”). Na verdade, é improvável que a intervenção militar ocidental tivesse ocorrido na Líbia se esta tivesse chegado ao patamar nuclear da Coreia do Norte, dado o enorme risco de o fazer num país com armas nucleares.
5. Tudo isto leva a um aspecto crucial da questão. O caso da Coreia do Norte não parece ser comparável com nenhum dos casos anteriores de abandono de programas de armamento nuclear. É verdade que vários países, de forma voluntária ou por pressão internacional, renunciaram aos seus programas de armamento nuclear. (Ver “Nations that gave up on nuclear bombs” in Newsweek, 27/08/2009). Todavia, nenhum estava num grau de desenvolvimento de capacidades nucleares — e de mísseis balísticos — tão avançado como aquele que a Coreia do Norte já terá atingido. (Ver Council on Foreign Relations “North Korea’s Military Capabilities”, 30/04/2018). Nem a Líbia quando abandonou o seu programa em 2003, num acordo com os EUA e Reino Unido, nem o Irão quando fez o acordo com os países do P5+1 e União Europeia em 2015. Assim, a comparação mais próxima parece ser outra: a dos casos do Paquistão, Índia e Israel. Todos estes Estados têm, tudo indica, capacidades nucleares militares efectivas, embora não enquadradas pelo Direito Internacional em vigor, estando afastados do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares de 1970. (Ver UNODA, “Treaty on the Non-Proliferation of Nuclear Weapons”). Assim, enquanto os EUA e Ocidente olham para a Líbia como modelo para um possível acordo de desnuclearização, a Coreia do Norte olha para a Índia, Paquistão e Israel, como modelos para reconhecimento do seu estatuto nuclear, se não de jure, pelo menos de facto.
6. Na Coreia do Norte, o regime de Kim Jong-un construiu a sua legitimidade junto da população com o argumento da defesa do país contra poderosos inimigos externos, especialmente os EUA. Tal como no Paquistão (e também no Irão), as suas capacidades nucleares militares têm sido apresentadas como um extraordinário feito nacional, o qual justificou imensos sacrifícios ao longo de muitos anos. Se abdicar do programa nuclear militar o regime está a destruir a sua legitimidade interna. Está também a tornar-se vulnerável a um derrube por uma sublevação da população apoiada do exterior, como aconteceu na Líbia em 2011. Nada indica que uma total desnuclearização possa ser conseguida, mesmo em troca de uma ajuda económica generosa e até de garantias de não intervenção política e militar dos EUA. Implicaria um elevadíssimo grau de confiança entre as partes que não existe, nem é provável que possa ser criado. Por outro lado, o interesse da China — outro actor crucial nesta questão —, não pode ser ignorado. Como potência mundial em ascensão está empenhada na sua própria versão da doutrina Monroe. (A proclamação feita em 1823 pelo Presidente dos EUA, James Monroe que qualificava qualquer intervenção das potências europeias nas Américas como um acto de interferência hostil). A China só aceitará um Estado-tampão nas suas fronteiras (situação actual), ou uma Coreia desnuclearizada sem interferência política e/ou militar dos EUA às suas portas. Os objectivos chineses são similares aos dos EUA em ascensão no século XIX, quando procuravam afastar os europeus das Américas. Claro que, a ocorrer assim, representará uma perda de poder e de influência para os norte-americanos na Ásia-Pacífico.
7. A cimeira que se deverá realizar, ainda neste mês de Maio, entre Donald Trump e Kim Jong-un tem gerado imensas expectativas. Provavelmente, são largamente exageradas e fundamentalmente irrealistas para uma questão tão complexa como esta. Num cenário já bastante optimista, algo parecido com o acordo que o P5+1 e União Europeia fizeram com o Irão em 2015, será, talvez, o máximo que se poderá esperar. Mas a negociação é ainda mais difícil pois, como já notado, o grau de avanço nuclear da Coreia do Norte coloca-a mais próxima do Paquistão, Índia ou Israel. Com todas as incertezas lançadas sobre o futuro do acordo nuclear com o Irão, nem sequer é fácil ter optimismo numa solução negocial desse tipo na Coreia. Para além das imensas dificuldades políticas e técnicas que não podem ser subestimadas, qualquer acordo durável implica um significativo grau de confiança entre as partes, quer para chegar a um entendimento, quer para cumprir o acordado. No actual contexto, está instalado um clima de máxima desconfiança entre os EUA e o Irão. É quase inevitável projectar-se sobre o programa nuclear da Coreia do Norte que tem já um longo historial de acordos falhados e trocas de acusações de incumprimento. Se desta vez não for assim será algo de extraordinariamente novo na política internacional. Tornará o populista Donald Trump e o ditador Kim Jong-un, nos dois mais estranhos e improváveis candidatos ao prémio Nobel da Paz, desde que foi instituído em 1901.