A tragédia de Fernanda Câncio
Fernanda Câncio, a repórter orgulhosa do seu feminismo e a lutadora pelos direitos das mulheres, deixou-se deslumbrar pelo exemplo mais básico e caricatural do macho-alfa.
Um amigo disse-me que o texto ferino que Fernanda Câncio escreveu esta segunda-feira no DN – “A tragédia de Sócrates” – foi como declarar guerra à Alemanha em 1945. Acertado, mas tardio. Países que declararam guerra à Alemanha em 1945: Equador, Paraguai, Peru, Uruguai, Egipto, Turquia, Arábia Saudita, Argentina. Temos de admitir que não são os melhores exemplos do mundo, tal como o seu texto não é o melhor exemplo de elegância e de timing – foi escrito com três anos e meio de atraso, e após o PS em peso puxar o tapete a Sócrates. Ainda assim, devo dizer que fiquei muito satisfeito por Câncio ter escrito o que escreveu, e por isso, no momento em que toda a gente a acusa de hipocrisia e outras maldades, apetece-me ensaiar uma defesa da sua pessoa, ainda que para Fernanda Câncio as minhas defesas se pareçam extraordinariamente com ataques.
Primeiro ponto, e ponto fundamental: eu, que ando há dez anos a escrever contra Sócrates, acredito em Fernanda Câncio. Acredito que ela não sabia que ele era corrupto. Acredito que Sócrates foi construindo ao longo da sua vida uma rede de caixas estanques, onde as pessoas de uma caixa pouco ou nada comunicavam com as pessoas de outras caixas. Acredito que ela engoliu a história da herança familiar. Acredito que se houvesse algum indício forte contra si na Operação Marquês o Ministério Público não teria hesitado em acusá-la. Até porque, convenhamos, era isso que apetecia fazer – pela sua atitude arrogante nos interrogatórios, por tudo aquilo que tem escrito contra a Justiça, pela postura absurda que manteve ao longo dos anos, pela mania de calar o essencial e vociferar sobre o acessório.
A tragédia na vida de Fernanda Câncio chama-se José Sócrates, mas infelizmente Câncio nunca foi capaz de admitir em público essa dimensão trágica, desde logo porque implicaria assumir uma humildade e uma fragilidade que ela recusa ter. Fernanda Câncio, a repórter orgulhosa do seu feminismo e a lutadora pelos direitos das mulheres, deixou-se deslumbrar pelo exemplo mais básico e caricatural do macho-alfa. Fernanda Câncio, uma das grandes jornalistas de investigação portuguesas, foi incapaz de perceber o carácter do político com quem namorou anos a fio, protegendo-o como se fosse uma vítima quando dezenas de pessoas o acusavam de ser mentiroso e corrupto. Fernanda Câncio, a defensora feroz da vida privada, viu o próprio José Sócrates demonstrar porque é que tantos detalhes classificados como “de revista cor de rosa” deviam ter sido notícia em jornais de referência. Perante um homem profundamente manipulador, é bem possível que ninguém tenha sido tão manipulado quanto a inteligente, perspicaz, talentosa, feminista, independente e reservada Fernanda Câncio.
Se isto já não bastasse enquanto tragédia, há ainda mais esta: o seu texto de segunda-feira no DN é bom, mas não chega. Um colunista, quando se engana estrondosamente durante anos a fio, não comete apenas um erro pessoal – esse erro contribui para enganar todos aqueles que o lêem e admiram. A traição de Sócrates a Câncio foi-se propagando até ela própria trair todos aqueles que estavam a lutar contra Sócrates e que ela criticou; todos aqueles que alertavam para um país asfixiado e que ela ridicularizou. Se a profissão de Câncio é escrever, então que escreva. Ninguém nos pode explicar a cabeça de Sócrates tão bem quanto ela. Fernanda Câncio admitiu finalmente que se enganou. Óptimo. Falta agora explicar-nos o como e o porquê.