Eu não quero lasanha de tofu, salada de soja, cenoura e repolho, eu não quero nabiças, grão-de-bico ou abobrinha, eu não quero soja fritinha nem croquetes de soja, eu não quero e não quero hambúrguer de soja, carne de soja ou bolinhos de soja, porque soja fazia o meu pai, ou o meu pai pensava que fazia, e 30 anos volvidos e ainda tenho o sabor da maldita na boca, dentro dos dentes, entre os dentes, de volta ao prato enquanto o meu pai olha para a televisão, “Não vais comer?”, “Não tenho fome”, respondia, e lá me safava até ao dia seguinte e a soja outra vez no prato à minha espera, fria como a vingança.
E por alguma razão nunca me fiz vegetariano e um homem precisa é de carne para se fazer um homem. E por isso é que estou na fila da cantina, com fome, é hora de almoço e, não me perguntem bem como, mas afinal sempre consegui ser professor, sim, e em Portugal, e mais ainda, perto de casa, mais precisamente em Palmela. E não, não dou ciências, sou professor do Ensino Básico e estou com fome, eu e os miúdos todos na fila para a cantina à hora de almoço. A senhora funcionária insiste que passe à frente, como os colegas e as colegas, mas eu não passo, não sou mais do que os meus alunos e não existo sem os mesmos, devo-lhes respeito, penso, mas não explico, e a funcionária que se vai embora entre um “o sôtor é que sabe” e este olhar de lado.
Chega a minha vez, lasanha de tofu, e eu a reconhecer–lhe o cheiro. “Desculpe”, pergunto à senhora funcionária de nariz torcido, “Isto aqui por acaso não é soja?”, e a senhora funcionária de imediato a disparar do lado de lá da barricada “Não, sôtor, é tofu!”, e eu, “Pode ser o prato de carne, por favor?”, e a funcionária a dizer que não com o nariz torcido, “Hoje o prato é vegetariano”. Hoje o prato é vegetariano e é se queres, e eu sem perceber, eu sem perceber e os miúdos atrás de mim e de fome no prato e nos olhos sem perceber, olho para as mesas, uma das miúdas já está a chorar, uma professora levanta-lhe a voz e a história do costume dos meninos em África, mas nós estamos em África, penso eu, por isso é que não há escolha, acrescento ao meu pensamento enquanto lá ao fundo há quem faça bolinhas com a soja, perdão, o tofu, e as atire ao tecto para delírio da criançada, mais dois miúdos de lágrimas na boca, nos dentes, nas faces, há quem saia da cantina sem comer e os meninos nesta idade ainda não se fizeram para reclamar, só chorar na esperança de que os meninos maiores, que somos nós, venham em seu socorro.
Mas eu não sou bombeiro, sou um professor, ainda ontem estava em Inglaterra e emigrado e agora em Portugal, logo em Palmela, bem perto de casa, e daqui a nada vou à praia. Mas entretanto a fome e o prato vazio na mão. Fui falar com a direcção de prato na mão. “Educação”, respondem, “em prol de uma vida mais saudável”, rematam, e eu sim senhora, plenamente de acordo, mas educação rima com opção, e para escolher é preciso primeiro saber, sem impor, sem obrigar, julgar e condenar, caso contrário não há liberdade, apenas obrigatoriedade, não há opção, apenas obrigação.
Fundamentalismos. O meu pai era um fundamentalista, um acérrimo defensor do vegetarianismo, e não fosse o meu pai tão mau cozinheiro e talvez lhe tivesse dado razão. O presidente do Conselho Executivo diz-me que tenho de comer o tofu. Mas nem eu nem as crianças, cuja fome terei de algum modo apaziguar esta tarde, iremos comer o tofu. E mais não lhe diremos, ou não estivéssemos numa escola.
Nunca mais comi soja e entretanto passaram 30 anos. Com medidas destas, os meus alunos nunca mais comerão soja, pelo menos durante os próximos 30 anos. Nem soja, nem tofu