Na minha habitual passagem matutina pelas redes sociais e pelos jornais e seus suplementos, os meus olhos pararam numa pergunta que servia de título a um artigo que li mais tarde. A pergunta era “Que memória gostavas de guardar para sempre?”. Percebi, depois de ler o artigo, que se tratava do desafio lançado pela Associação Alzheimer de Portugal a todos os portugueses para realizarem um vídeo onde revelassem qual seria a memória que nunca quereriam esquecer, uma única memória que pretenderiam preservar até ao fim da vida. Dei por mim a pensar que o desafio era bem interessante e que, provavelmente, o iria aceitar: faria o tal vídeo para partilhar. Foi aí que comecei a analisar as minhas memórias e a pensar qual seria a memória mais importante para mim até aos dias de hoje, qual seria aquela que eu quereria manter até ao fim dos meus dias. Assumo que passaram por mim algumas imagens: a primeira vez que vi as minhas sobrinhas, aqueles momentos impagáveis em que dás uma gargalhada com a tua irmã ou aquele momento em que todas as coisas no mundo ficam no sítio certo por dares um abraço apertado às pessoas que mais gostas ou até o primeiro beijo dado a uma pessoa que consideras especial. Sinceramente, gostaria, no fim da minha vida, de me lembrar desses momentos que citei e de mais uns quantos em que considero que fui genuinamente feliz. Contudo, não penso que fosse capaz de escolher apenas um momento. Mas uma coisa tenho como certa: escolheria sempre um momento em que me senti muito amada, em que senti que fazia parte de uma família. Eu sei que isto é um nadinha cliché, mas a verdade é que me incomoda o pensamento que um dia poderei esquecer o quanto fui e sou amada por aqueles que são importantes para mim. Até aos dias de hoje não existiram muitos casos próximos dos meus afectos que sofressem de Alzheimer (felizmente). Todos os meus avós (que já faleceram) sabiam quem eram e quem eu era na hora da morte deles. E quando penso nisso com mais afinco penso o quão importante e bom isso foi, tanto para eles como para mim. A despedida, na hora do falecimento, foi dura, mas a verdade é que não tive de me despedir de ninguém antes dessa hora fatídica. Considero que é isso que acontece com quem sofre de Alzheimer: vamos fazendo as despedidas, aos poucos, à medida que a doença vai roubando a memória de tudo o que é e foi, até ao dia em que apenas resta um corpo, sem as vivências e memórias que ligavam aquela pessoa à sua família. Contudo, possuo dois casos (um ainda vivo) e outro que infelizmente já faleceu, que sofreram dessa terrível doença. Curiosamente, ambas tias-avós. Relembro o quão triste era ver a minha tia-avó a não reconhecer o seu próprio reflexo no espelho. Olhava e dizia: “olha, a minha mãe”. A vida para ela tinha ficado lá longe, numa infância há muito perdida, em que ela ainda era uma criança que brincava com bonecas. Automaticamente, toda a sua vida ulterior foi esquecida: filhos, netos, marido, deixaram de existir. Passaram a não ser mais do que seres estranhos que insistiam em cuidar dela e que viviam perto dela sem que para isso ela encontrasse uma explicação (não que ela a procurasse). Ela apenas era uma criança, que brincava com bonecas, sempre que encontrava alguma boneca das suas netas e que apenas sobrevivia aos dias.
No segundo caso, também um caso de uma mulher e de uma tia-avó minha, percebi que esta terrível doença lhe estava a roubar o ser, as memórias e as lembranças no dia em que a fui visitar ao lar, onde actualmente reside, e no momento em que, ao ter chegado junto dela, os seus olhos não se iluminaram. Era uma tia-avó muito próxima. Uma outra avó, no que aos meus sentimentos diz respeito. E sei bem que para ela também eu era uma das meninas dos seus olhos. E por isso me foi tão difícil perceber que a luz, tão conhecida nos seus olhos, não se acendeu quando cheguei. Na época ainda reconhecia o meu pai — o que, assumo, também me feriu. Como poderia ela reconhecer o meu pai e não me reconhecer a mim?? É claro que isto não passava de pergunta retórica para a qual não teria explicação. Pelo que, depois de cumprimentar o meu pai, me colocou a pergunta que me fez perceber que, naquele dia, se iniciavam as despedidas: “Quem é a senhora?”. A minha tia-avó que me tinha visto crescer, eu que sempre tinha sido uma das suas meninas, não era reconhecida naquele momento. Olhou para mim como a mulher feita que já era e questionou quem era a senhora. Já lá vão uns anos desde essa pergunta. A situação foi piorando e momentos houve em que me reconheceu e outros não. Neste momento, o esquecimento de quem fui e do que representei para ela é total. A minha tia apenas assiste, impávida, aos dias que passam, perdida nos seus próprios pensamentos, sem a lembrança de que um dia fui uma pessoa importante para ela. Aquela que sempre falou por mim e por todos nós não considera mais útil recordar momentos e partilhá-los…
Quando me deparei com aquela questão — “Que memória gostavas de guardar para sempre?” — pensei em tudo o que aqui escrevo e tenho certeza de que gostaria de guardar para sempre a memória de quem fui, de quem sou e em quem me tornei. Gostaria, sobretudo, de ter a certeza de que não me esquecerei daqueles que me acompanharam durante a viagem. O vazio que se instalou na vida da minha tia será deveras angustiante. E partir sem as memórias que criaram ao conviver connosco é demasiado pesado para quem fica. E é isso. À questão “Que memória gostavas de guardar para sempre?”, responderia: a memória de mim mesma.