Lugares Interiores: Maria

Está sentada junto à janela que tem mais luz que as outras. Olha as pernas como um labirinto, esfrega-as, sacode-lhes a roupa, sacode-lhes a pele, quer muito tirar a roupa, tirar os vincos, reduzir informação, alisar

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Ilustração/Filipa Godinho

Ouve-se falar em loucos.

Ouve-se falar que os loucos trazem o medo com eles, que onde os seus olhos pousam, onde os seus dedos tocam, a loucura se instala e neles cresce sem se ver até os virar do avesso. Como uma camisola se vira do avesso. Diz-se baixinho por ali que acontece igual às pessoas. Fica-se no interior de um ovo onde o mundo lá fora só espreita, mas não entra mais. Alguns abrem a boca e sai-lhes a mudez como um grito. Outros abrem os olhos e saem todas as palavras que conhecem pelas pálpebras demasiado abertas, exageradas, proporcionais ao sorriso com demasiado riso, dentes, infância e medo dentro. Alguns ainda, e esses são muitos, estão sentados e pelos seus pés o chão expande a distorção das coisas. Sai-lhes a doença como lhes sai a sombra, quase líquida, verte pelo chão e inunda a sala baixinho subindo pelas pernas de quem ousa por lá andar. Começa nos pés e num arrepio muito lento trepa a pele e vai até se alojar onde os cabelos nascem.

As meninas vestem branco e usam sapatos de borracha. Calcam o medo como quem esmaga baratas numa rua onde só importa caminhar em frente. Estão em missão porque são jovens. Ela gosta delas porque vestem de branco o corpo e o sorriso. Ela não tem sapatos de borracha. Tem medo do chão. Ouve falar dos loucos e teme-os. Diz que tem medo. Já os viu quando era jovem. Fala sobre o seu medo a toda a gente com as mãos e com as pernas, mexendo-as como quem mexe os lábios. Treme. Olha-os e diz palavras com o corpo, devagar, para os avisar. Quando ninguém se adivinha perto, se acha só, enrola-se sobre si mesma em descanso. Faz do seu corpo uma casa numa curva que se alicerça ao chão, entra nela, fecha a porta. Fala com o que tem sob os pés. Com as tábuas alinhadas e tudo que nelas se afoga todos os dias, os pés que vêm e vão à volta do seu corpo rotunda, as sombras, as linhas da madeira, as coisas que passam e as que não mexem.

Está sentada junto à janela que tem mais luz que as outras. Olha as pernas como um labirinto, esfrega-as, sacode-lhes a roupa, sacode-lhes a pele, quer muito tirar a roupa, tirar os vincos, reduzir informação, alisar. O calor do verão espalha-se pelos seus braços e ela quer dobrar as mangas da camisa. Arregaçar as pernas e os braços. Com os dedos tenta dobrar a pele sobre os pulsos mas a camisa não sobe. Está apertada demais. Com as unhas procura a ponta por onde puxar o punho. Junto às veias azuis do pulso surgem veias vermelhas traçadas com unhas. Gostava de conseguir tirar todos aqueles fios e atirá-los para o chão para que alguém os aspire, deviam estar mais arrumados no corpo, o braço devia estar todo branco, tantos fios a sair do casaco velho. Tem calor. Está a ficar enervada. Não consegue subir as mangas e os pulsos estão a doer. Pelo chão o sol desenha um polígono que lhe apanha as pernas. Ela espanta-se. Subitamente percebe que tem uma guilhotina em linha reta abaixo dos joelhos. Não tem a certeza se lhe dói. Não consegue decidir se dói. Está confusa. Está-lhe no corpo. Sacode-a com pressa, antes que queime, antes que doa, sacode a luz do sol do corpo, da roupa. Quando a mão avança a linha horizontal que separa a luz da sombra, mudar de cor. Passa para o lado de lá. Há um lado de lá mesmo ali, e parece-lhe que vem. Uma espécie de precipício que se abre, cresce, avança. Talvez a corte. Talvez a engula. Talvez lhe agarre os pés. Levanta-se e chegando-se para trás toma-se pela urgência de tirar os sapatos, sacode-se, sacode as pernas, tiras as calças, atira-as para longe enquanto tenta acalmar a entrada do ar que quase lhe rebenta o peito.

A menina de branco vem depressa. Segura-a pelo braço. Fala com ela. Apanha as calças. Parece compreender. Ela acalma-se.

Olha para os seus pés descalços no chão. Não está certa de ter escapado. À sua volta há cadeiras, com rodas, sem rodas, com gente pousada, gente com e sem gente dentro. Os seus pés estão no chão. Ela não tem rodas. Um arrepio gelado sobe lentamente o corpo imóvel. Lentamente. Sobe-lhe as pernas, as costas, gelado, os dedos, os braços. Ela não se mexe, não pisca os olhos, não quer nem respirar. Teme o afogamento sob os cabelos, perder-se por dentro como os outros, os outros, de que ouve falar. A menina de branco percebe a sua aflição, veste-lhe as calças, senta-a, calça-a, arranja-lhe o cabelo com carícias, instala uma multidão de música e vozes na sala, coloca-a em frente à tv. É terça-feira de manhã, dizem, bom dia! Estamos em direto dos Açores. Três mulheres vestidas de meninas começam a dançar. Ao seu lado no sofá um Sr. chama quem julga ver correr à volta da mesa, junto à lareira. Ela não os vê. Ela olha e não os vê. Está certa de que não está nos Açores. Fica confusa. Não vás para longe, vem cá para que te veja!, diz ele com o braço esticado para frente. A chuva agravou-se, chove torrencialmente aqui, hoje. Vamos passar ao estúdio… Ela olha o sol a rasgar o chão pela janela. Mariiaaa! Quietinha filha, anda cá. O arrepio nos cabelos a encolher-lhe tudo, a diminuí-la, sente-se a ficar minúscula, a afundar-se no sofá. Não vê a Maria. Não vê a chuva. Não vê nada. Aflige-se. Enche-se e esvazia-se com o ar todo da sala, o seu peito em tornado agita tudo, ouve-se longe. Onde anda essa Maria que corre à chuva? A menina de branco vem. Calma D. Maria. Calma… não chore mais. Vai ficar tudo bem querida.

Ela passa as mãos no seu rosto molhado. Observa as mãos molhadas, chovidas. Ouve Maria. É ela a Maria. Estou aqui. Está tudo bem… Sempre quis ir aos Açores. Está tudo bem. Sorri.

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