Não são os tempos da peste bubónica, mas não se pode negar que os habitantes das ilhas do Porto continuam a viver mal e a estar expostos a uma série de pragas que lhes dificultam viver uma vida boa. Paradoxalmente, embora estas ameaças sejam de natureza sistémica, as estratégias para resolvê-las são sempre de carácter fragmentado. Olhem só para a questão do direito à cidade. Costuma dizer-se que primeiro vem o alojamento e depois o resto. Não concordo: primeiro vem o alojamento, e antes disso, a habitação. Isto é, a equilibrada relação entre o individuo, a envolvente e as oportunidades que esta promove para ter uma vida condigna.
O problema é que parece que o jogo está viciado. E, pior, que não procurando alternativas, tornamo-nos cúmplices do crime. Olhamos à nossa volta e cada passo possível parece em falso. As armadilhas que impedem que a cidade se transforme num instrumento de desenvolvimento colectivo estão por todo o lado: quando não é a burocracia, é o financiamento; quando nenhum dos dois, os constrangimentos do ecossistema da construção. São as três pernas que suportam o tabuleiro em que nos movemos, uma aparente escassez de escolhas que frequentemente nos conduz a falsos dilemas.
Acham que não? Vão à rua de São Victor, no Porto, e olhem para as obras em curso. Poderão ver que ou se investe pouco (ou nada) e as populações continuam a viver mal, ou se investe muito e se abre a porta à substituição da população por outra que garanta a rentabilidade desejada. Para o bem ou para o mal, já não identificamos as ilhas como restos de um naufrágio: começam a estar associadas à descoberta de um tesouro. O facto de termos passado da lógica da mensagem da garrafa à do canto de sereia que atrai ricos navegantes demonstra claramente a necessidade de novas ferramentas capazes de tornar o património de objecto em disputa a elemento de coesão social.
No Habitar pensámos que era preciso fazer alguma coisa. Fiéis à convicção de que os recursos para a mudança social existem e que só temos de articulá-los de outra maneira, durante o último ano temos estado envolvidos numa iniciativa que visou, por um lado, incentivar uma ideia de projecto de arquitectura que facilite a construção de uma cidade mais justa e, por outro, formar técnicos capazes de questionar a barreira entre intervenção física e intervenção social. O veículo usado, nesta ocasião, foi o concurso Ibérico Pladur, que, organizado em parceria com dezenas de faculdades de arquitectura, visava nesta sua 27ª edição pensar soluções para uma ilha na Praça da Alegria.
É importante perceber que os concursos de arquitectura podem ser lidos como forma de escolher o melhor corte, a melhor planta ou o melhor alçado, mas também como um modo de mudar as regras do jogo na produção de habitação. A nossa aposta foi pela segunda opção, penso que o êxito do concurso tem de ser medido com base nesses parâmetros. Isto é: que se conseguiu que um número de propostas maior do que é habitual escolhesse uma abordagem onde os interesses dos técnicos iam de mão dada com os dos inquilinos e os dos proprietários. E que uma delas venceu.
Onde reside a inovação dos projectos que, como o vencedor, colocaram novos princípios em cima da mesa? Na resposta àquilo que lhes foi pedido: adaptar o projecto à realidade física, social e económica existente. Como o fizeram? Definiram o investimento possível com base no equilíbrio entre rendas controladas e prestações mensais baixas; aproveitaram a chegada dos novos residentes para melhorar a vida dos que já lá estavam; idealizaram estratégias suscetíveis de serem implementadas progressivamente e abertas a excepções; entenderam que as ligações afectivas às casas tinham de prevalecer sobre a ânsia de intervencioná-las a todo o custo.
Criaram-se, assim, novos moldes para que os estudantes questionassem o papel da reabilitação urbana. Papagaio que denúncia a existência do tesouro ou bússola capaz de rumar a cidade a bom porto? Sem dúvida, o segundo. Podemos pensar que as propostas propuseram abordagens revolucionárias? Eu acho que, simplesmente, conquistaram o bom senso e o tornaram arquitectura.
* Não me atribuam a criatividade do universo simbólico das Ilhas do Tesouro. A narrativa foi criada pelos participantes do Workshop “Viver no Bonfim”, organizado pelo colectivo Left Hand Rotation em parceria com várias associações locais e celebrado no Sporting Clube São Victor entre os dias 20 e 22 de Abril de 2017.