Ó seu morcão!

Já pensaram quantas decisões tomamos não porque nos convenham, mas porque o desejo de poder lançar um sorridente “eu não sou parvo” é mais forte do que nós? Na habitação, o problema não é comprar, vender ou arrendar. Não façam o que vos é pedido: peçam o que deve ser feito

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Paulo Pimenta

Quando há uns anos perdi os meus óculos e tive de comprar uns novos, fui a uma óptica que na altura tinha uma gigantesca campanha publicitária. Escolhidos os que mais me convinham e já no balcão prestes a pagar, a funcionária informou-me que tinha direito a levar outro par, da marca branca deles, pagando apenas um euro adicional. Agradeci a oferta, mas recusei-a, o que me fez algum sentido dado ter apenas dois olhos. A minha namorada não achou o mesmo e, virando-se para mim, lançou-me aquelas três temidas palavras: “tu-és-tolo?”. Alertado pela possibilidade de o ser, perguntei se havia alguma outra alternativa e fui informado de que poderia levar apenas os que queria, usufruindo de um desconto de 30%. Feliz, aceitei. Levei os óculos. O namoro não foi longe.

Já pensaram quantas decisões tomamos não porque nos convenham, mas porque o desejo de poder lançar um sorridente “eu não sou parvo” é mais forte do que nós? Vejam alguns exemplos. Durante anos, o desporto nacional em Espanha foi comprar uma casa e pagar a hipoteca com os rendimentos do arrendamento. Afinal... quem seria tão idiota para recusar aumentar o seu património a custo zero, ainda por cima quando “o-valor-da-habitação-sempre-aumenta”? O problema veio depois, com a crise financeira, a perda massiva de empregos, a incapacidade para pagar ao banco e as execuções hipotecárias. Toda uma data de acontecimentos que, por outro lado, levaram à injusta estigmatização daqueles que, afinal, “tinham-vivido-acima-das suas-possibilidades”.

A aspiração a ser proprietário a todo o custo tem sido historicamente uma maneira de ganhar status social, perdendo, em simultâneo, qualidade de vida. No âmbito de um trabalho de diagnóstico socio-espacial em Campanhã, no Porto, que concluí recentemente, chamou-me a atenção que as áreas com maior presença de pobreza da zona de estudo não eram as habitadas pelos inquilinos dos bairros sociais, mas aquelas onde havia mais proprietários. Uma colega investigadora explicou-me que não se tratava nem de um erro estatístico nem de uma excepção à regra. Trata-se de uma situação muito comum nas casas promovidas numa lógica de renda resolúvel. O resultado? Casas próprias e bolsos vazios.

Seria injusto culpar os proprietários desta situação. A pressão social para “fazer negócio” com a habitação é fortíssima. Quando contei a um colega o caso de mais um conhecido snack-bar que vai ter de sair do seu actual local, na zona dos Poveiros, por causa do aumento das rendas, ele despachou o assunto com um eloquente: “Foram-burros-por-não-comprar-quando-era-barato”. O mesmo acontece com os proprietários que, não querendo desprender-se do seu património, têm de aturar esse “eh-pá-ainda-vendes-essa-porcaria-por-uma-pipa-de-massa!”. Não comprar quando é barato ou recusar vender quando é caro pode ser considerado um acto de suprema palermice mas, quando vai ao encontro das nossas necessidades, creio que constitui uma prova de forte personalidade.

Não faltam exemplos desta atitude. Há uma cena célebre no conhecido filme “Good Will Hunting”, onde o protagonista, um promissor mas inadaptado jovem, recusa um fantástico emprego na National Security Agency porque receia que o prestígio e o status que lhe outorgue o seu reconhecimento como génio das matemáticas seja à custa de contribuir para a proliferação de guerras e invasões. A lição a retirar é que podemos e devemos questionar os papeis que nos são atribuídos. O “risco” de contribuirmos para uma vida mais razoável para nós e para os outros é muito mais elevado do que o “perigo” de descobrir que somos uns verdadeiros imbecis.

O mesmo acontece com a habitação. Quem pode, sabe que é mais rentável pagar uma hipoteca do que uma renda. Mas sabe também que fica preso ao banco, ao emprego e ao tempo. É por isso importante ultrapassar os falsos dilemas: o problema não é comprar, vender ou arrendar; a armadilha está em fazê-lo com base em regras do jogo que não nos favorecem. Querem um conselho? Não façam o que vos é pedido: peçam o que deve ser feito. Desafiem quem tem responsabilidade, conhecimento e meios para criar soluções que dêem resposta às satisfações reais com custos individuais e colectivos mais baixos. Não sejam morcões.

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