Fui ao atelier da Ana Rafael há bastante tempo: de facto, quando lá fui da primeira vez, ia com a intenção de visitar o novo atelier do Hugo Bernardo. Sabia que o Hugo o partilhava com outras duas pessoas, a Marília e a Ana. A ideia seria falar sobre o novo espaço dos três, o Atelier Cabine.
O Atelier Cabine fica nos Anjos e está aberto ao público em dias definidos pelos artistas. Era uma antiga padaria que, com a chegada do trio, foi remodelada e agora é um enorme open-space com zona para joalharia e um amplo espaço sem qualquer divisão física onde a Ana, o Hugo e a Marília trabalham.
A Marília não estava presente e a disposição dos materiais do Hugo era mais ou menos a mesma da de casa, bem como o seu trabalho que, segundo ele, está prestes a dar uma volta. O que me chamou a atenção e foi verdadeira surpresa para mim foi o trabalho e a personalidade da Ana Rafael.
O Hugo trabalha lá ao fundo, a Ana trabalha na zona do meio e a Marília próxima da entrada. Estar na zona da Ana é estar um pouco entalado, apesar do espaço ser desafogado. Mas é uma zona que está à mercê. Porque a Ana é silenciosa e o seu trabalho minucioso e de movimentos pequenos, não parece importar-se com o grau de exposição. A sensação que o espaço transmite é a de algum contágio, mas os artistas garantem que cada um se ensimesma e não se incomodam uns aos outros.
A Ana é uma artista que trabalha essencialmente com papel, colagens e recortes. Começou em Pintura nas Belas-Artes mas mudou para o Ar.Co porque sentia que precisava de outro tipo de ensino. Uma coisa mais prática, diz ela. Não que a teoria não seja importante, mas o esquema de ensino nas Belas-Artes não era aquele que melhor a estimulava a desenvolver o trabalho que queria fazer.
Repetiu-se ao longo da conversa quando falava da sua relação com os objectos. Dá-se melhor com coisas do que com pessoas, a linguagem é a mesma. Antes, quando estudava na universidade, pintava outras coisas, muitíssimo diferentes daquilo que é o seu corpo de trabalho hoje. Agora, sente que se entende consigo de uma forma mais séria e sincera, também influenciada pela terapia que faz.
O seu espaço de trabalho está repleto de pequenas coisas. Cada canto tem muito para ver, é impossível dar uma vista de olhos rápida. O tempo de olhar para cada recorte é o tempo de olhar para uma coisa que nos é familiar de alguma forma, mas não sabemos bem de onde. Todas as coisas se movem, todas as coisas correm por cima da mesa e mudam rapidamente. Nota-se que tudo está fora do lugar final e que o seu trabalho é de persistência, de insistência. A tentativa e o erro estão à frente dos nossos olhos.
Aquele espaço parece enorme em comparação com a minúcia do trabalho da Ana. Dá-me a sensação de que o seu trabalho foi sempre feito num espaço pequeno e que ele era do tamanho possível. Quando lhe pergunto se acha que o trabalho vai mudar influenciado pelo espaço, responde-me que é possível, mas ainda sem grandes certezas. Precisa só de uma mesa e de uma cadeira. E de não pensar enquanto executa a tarefa de seleccionar imagens e recortá-las. Está ali, numa espécie de transe, e depois logo pensa, logo se torna consciente quando olha para os pequenos objectos.
A Ana falou na capacidade do seu trabalho mudar uma série de vezes. Não significa que não tenha uma base, um movimento que segue numa determinada direcção. Mas essa consciência de si, que a Ana refere várias vezes, não implica que não se deixe ir. Construir um corpo de trabalho, que começa agora a ganhar uma forma mais definida, implica estar à mercê daquilo que lhe acontece e a Ana parece disposta a isso.
É calma e segura a falar. Quando conversámos, primeiro pouco e envergonhadamente, para depois a conversa se tornar reveladora e à vontade, é claro que a Ana está à procura de um ponto de equilíbrio. Usa aquilo que tem e diz que o que lhe importa é fazer, fazer muito e o máximo que conseguir. O que acontece aos trabalhos depois de estarem concretizados já não lhe diz respeito. Só pode agir num momento, o da execução, e por isso escolhe fazê-lo com o cuidado e respeito devidos.
A zona de trabalho da Ana parece tender a tornar-se um organismo da natureza. Parece poder encontrar-se aí, como às vezes se encontram coisas estranhas. Parece que um humano decidiu mudar-se para a floresta e levou consigo o grau mínimo de humanidade que necessita para se identificar. Fez-me lembrar uma pegada estranha de um animal desconhecido: nada destrói e é uma coisa da natureza, mas sabemos que aquele é o seu lugar e nós é que o estamos a invadir.