É possível ir à cabana do Thoreau a trinta minutos de comboio de Lisboa. Chega-se à Portela de Sintra, anda-se dez minutos de carro por entre arvoredos cada vez mais densos e encontra-se uma casa enorme. Mas em vez de entrar, subimos umas escadinhas até a uma portinhola verde que abre para dentro de uma sala muito acolhedora. Estamos em casa do Malia Poppe.
Eu julgava que o Malia era indiano mas não: nasceu em Lisboa como José Maria. Malia vem do atropelamento dos r's quando era criança e tornou-se o seu nome. Viveu em inúmeros sítios, mas regressou a Sintra, onde foi educado. Apesar de ter 65 anos, tem absoluta consciência da morte e por isso vive muito bem. Suponho que o conforto imediato que senti ao lado do Malia venha da sua absoluta paz de espírito, como se estivesse a conversar com alguém que já morreu, ressuscitou e decidiu aproveitar aquilo que tem. Estar com esta pessoa é ir muito dentro.
Não foi fácil ser Malia: não teve um crescimento simples, não gostava da escola, não se rodeava das melhores companhias. Mas, contas feitas, é um privilegiado por ter uma boa família que é o seu suporte emocional. Com a morte do pai aos treze anos, teve que mudar de colégio para a mãe conseguir suportar o encargo. Chumbou o primeiro ano na escola nova porque, sendo nas Janelas Verdes, passava os dias no Museu de Arte Antiga. Quis ir para a António Arroio, mas não deixaram: um dos irmãos convenceu a mãe de que ser artista não era vida.
Viveu no Brasil e voltou a Portugal sem nunca trabalhar próximo das artes. Um dia, um dos sobrinhos propôs ir ao dia da criança no Ar.Co. Gostou tanto que decidiu inscrever-se. Fala de todos os professores, que entretanto se tornaram seus amigos, com muita doçura, como se lhes estivesse agradecido por alguém ter visto uma parte sua à qual ninguém tinha prestado atenção.
A sua casa-atelier tem duas portas para a rua, uma em cada lado do minúsculo espaço, como se aquela zona fosse só uma paragem no percurso. O Malia sai e caminha muito, por horas, sem qualquer preocupação. A sua conversa faz lembrar a poesia de Manoel de Barros: muito simples e, também por isso, desconcertante. Sempre no ponto, sem nunca perder o raciocínio. Não tem ânsias de grandiosidade nem é pretensioso: está cá da melhor forma possível.
Contou-me que adora os sobrinhos, que são eles que lhe dão alento. Exactamente no meio da sala está a cadeira que foi da sua mãe, de quem o Malia tomou conta no final da vida. Agora senta-se na cadeira como se se sentasse ao colo da mãe.
A simbiose entre atelier e casa obrigam-no a olhar para o trabalho todos os dias e a estar à vontade com os seus fantasmas. Se antes gostava de sair até tarde, se era uma pessoa festiva, agora deita-se e levanta-se cedo. Está muito confortável com o lugar que ocupa, com aquilo que o seu trabalho é e com a forma como organiza a sua vida.
Há um certo tom melancólico na sua voz, mas também infantil e alegre. Nos seus passeios, vai recolhendo rochas sob um critério só seu. A determinada altura foi até à sua colecção e escolheu uma delas para me oferecer. Essa rocha pousa agora na minha estante, à frente de alguns livros. Vou recordar-me sempre do dia em que me disse que, antes de ser artista, é Malia Poppe e com essa consciência pode ser qualquer coisa.