Vizinhos, por que é que não resolvemos as coisas em grupo?

Por que é que os vizinhos deixaram de ser um suporte e vivemos isolados? Criadores do projecto Kunoleco acreditam que os problemas são mais fáceis de resolver em grupo. E querem potenciar essa aproximação. Experiência-piloto vai arrancar em Sacavém.

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Eduardo Saldanha, Mafalda Matos e André Valério em Sacavém, onde a experiência piloto vai arrancar Rui Gaudêncio

Foi a trabalhar na empresa de gestão de condomínios do pai que André Valério se apercebeu do isolamento em que muita gente vivia nos prédios lisboetas. Por essa mesma altura, o estudante de mestrado em Engenharia Biomédica descobriu em Beja um projecto chamado Tamera, Centro Internacional de Pesquisa para a Paz, onde uma comunidade de 200 pessoas investiga formas mais sustentáveis de vida. No decorrer das duas experiências, André sonhou com uma mudança, pensou em “deixar a cidade e ir viver para o Alentejo”. Não chegou a fazê-lo, mas a convicção ali confirmada de que “a maioria dos problemas são mais comuns do que individuais, e de que é mais fácil resolver as coisas em grupo”, fê-lo começar a magicar um projecto.

Chama-se Kunoleco — palavra que significa comunhão — e põe este mês no terreno um projecto piloto para tentar mudar a associação de moradores do Real Forte, numa urbanização com 17 lotes em Sacavém. A ideia é “criar sinergias e juntar pessoas pelas necessidades, talentos e interesses pessoais, mas também ajudá-las a pensar de uma forma sustentável a nível de prédio”, contou numa entrevista telefónica ao P3 André Valério, que com Eduardo Saldanha e Mafalda Matos completa a equipa deste projecto de engenharia social. 

A ideia começou a ser maturada há um ano. André e Eduardo estudaram o mercado, procuraram parcerias, tentaram perceber se havia interesse dos condóminos em adoptar um projecto que os unisse aos vizinhos. Trocando por miúdos: “Serem comunidades funcionais e intencionais em vez de condomínios. Queremos que um apartamento não seja um lugar de isolamento”, explica. André Valério despediu-se do trabalho onde estava, viajou, fez cursos. Percebeu que além da formação dele em Engenharia e dos conhecimentos de gestão de Eduardo, a equipa precisava de um terceiro elemento. E ao conhecer o interesse pela área da actriz Mafalda Matos, que participou na série Morangos com Açúcar, tentou um contacto. E a equipa ficou completa.

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O “projecto piloto do projecto piloto” foi testado no prédio onde André vive

A Kunoleco define-se como um “projecto pioneiro de engenharia social”. E isso significa reflectir e actuar cientificamente sobre uma série de temas, explica André: “Por que razão as pessoas vivem isoladas, porque é que não existe mais entre-ajuda, porque é que vivemos numa pseudo-comunidade e não falamos com o nosso vizinho, porque é que os vizinhos deixaram de ser uma forma de suporte como eram até há pouco tempo?”

A actuação da Kunoleco passa por sessões de coaching e team building, numa aposta na agricultura urbana, em sistemas de aproveitamento e reutilização de água, em soluções energéticas inovadoras, renováveis, ecológicas e competitivas. Entre outras apostas que ficam, para já, no segredo que os negócios exigem.

"Cada prédio pode ser uma agulha de acupunctura"

O “desvio” de André para a engenharia social não foi um afastamento da sua área de formação. “A maior parte dos engenheiros biomédicos dedicam-se à medicina curativa, eu prefiro a preventiva”, diz. E prevenir significa, neste caso, estar mais próximo dos outros: “Quando cooperamos e vivemos em grupo somos mais felizes e isso melhora nossa saúde.” Usando uma metáfora: “Cada prédio pode ser uma agulha de acupunctura. Mudar o paradigma da forma como vivemos nas cidades, de forma isolada.”

O “projecto-piloto do projecto-piloto” foi testado no prédio onde André vive. Um lugar “sui generis, com apenas três apartamentos”, onde existe uma “comunidade a sério”, conta. Numa primeira fase, a Kunoleco foi idealizada a nível de junta de freguesia, mas os criadores quiseram ter “provas dadas” do conceito antes de o pôr no terreno em maior escala. A ideia é ir enraizando o conceito, prédio a prédio. “O prédio é um veículo inicial melhor porque tem coesão. As pessoas já se conhecem. Depois queremos envolver as autarquias.”

Em Sacavém, a experiência conta com uma parceria com a Noocity, marca portuguesa que em 2014 criou um sistema especial de subirrigação que oferece maior autonomia e produtividade e promete tornar o cultivo de hortas urbanas mais fácil e simples. Há já uma empresa a desenvolver uma aplicação para o projecto, o que ajudará na criação da comunidade. E foram feitos contactos com o projecto espanhol La Escalera, que André Valério conheceu através de uma notícia do P3, a pensar numa futura colaboração.

“É uma parvoíce estarmos de costas voltadas. Há quem queira fazer networking no trabalho e nunca o faça com os vizinhos”, diagnostica. O modelo da Kunoleco foi criado para ser facilmente possível a “replicação em qualquer parte do país ou lá fora”. Além dos condomínios, o trio quer testar a ideia em famílias, com acompanhamento mais individualizado, e em bairros. “Vivemos numa sociedade onde se alguém nos tenta ajudar na rua achamos que é estranho. Nós queremos mostrar que pode ser normal.”

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