Sentir-me-ia culpado se te tivesse feito nascer. Sentir-me-ia culpado se não te tivesse feito nascer. Mas como nasceste, com ou sem mim, resta-me a sensação de tristeza, entre a felicidade de te possuir no sonho. Nasceste e fizeste-te, e cada segundo teu é uma centúria de imaginação.
Confesso que, olhando para ti, vejo a tua mãe. Amei-a como ninguém. Ainda a amo, mas não posso ou devo confessá-lo, porque ela, agora, está bem casada com alguém que a merece. Não saíste de mim, nem do meu pensamento, mas entraste no meu coração, ainda mal te seguravas no ventre da que me anunciava a "boa nova". Ela apresentou-te a mim, e eu ia jurar que me deste logo um pontapé, não sei se de amizade ou repúdio, para mim foi um sorriso. Amei-te logo, ainda não tinhas nome. E soube, desde o primeiríssimo momento, que virias para nos unir.
Espero que não te importes de ter conhecido a tua mãe antes do teu pai. Eu não me importo que tenhas aparecido por ideação do suposto rival (foste ideada sem ser convidada). A tua mãe continua a ser muito minha, sem que me pertença, sem que alguma vez me tenha pertencido. E tu, não consigo deixar de pensar que és minha também, sem que alguma vez alguém pudesse conter tua natureza selvagem. Ainda bem que nasceste do teu pai, a tua mãe e eu somos pessoas complicadas, não me perdoaria de ter originado mais infelicidade. O teu pai tem sido excelente, insubstituível. E a tua mãe, excelsa como nem ela imaginaria, olha... tu és a cara chapada dela, disso não te safas, nem tu, nem eu, que, sempre que te vejo, apetece-me encostar a tua cabeça ao meu peito, como ela fazia há muitos anos. Posso tratar-te por "filha"? Tudo bem, concedo em ser teu "tio", é assim que me conheces, como "tio Luís".
Sabes, no dia em que nasceste, o teu pai segurava-te com firmeza, a tua mãe tinha medo de te partir, e eu um terror de te pegar, mas não te livraste de levar com umas carícias no teu cabelo (dei-as com a minha boca, entre beijos), uma penugem que ainda não anunciava os caracóis da tua mãe. Os teus olhos eram pequeninos, e nós dissemos que sairias ao pai. Três meses depois, já os teus olhos nos traíam, já parecias a tua mãe com os seus "olhões" — que, noutros tempos, dizia serem os meus faróis —, e, uns anos mais tarde, vieram os caracóis, e eu comecei a chamar-te "Caracolinhos". No outro dia, quando te voltei a ver, sorrias como ninguém, já parecias "alguém" independente, nem sei como nos trocaste as voltas, andamos com fobia de "sermos", com um pavor de tocarmos a mais ou a menos quem se faz na ventura da vida, mas os teus olhos brilhavam, e tu parecias, pareces, mais feliz que nós, os adultos, às tantas acabarei por depositar em ti o peso da esperança, como deposito já a responsabilidade de "seres" para além do meu primeiro amor, a tua mãe não se importará que já sejas mais do que ela, que o meu amor por ti seja de um egoísmo que a exclui... porventura, nem será verdade, eu amo-te na medida em que a amo, e amo-a porque me quero amar a mim, aos meus primórdios, ao princípio da fascinação. O amor é uma saudade, quando te abraço, estão abraçando-me com mama dessiderada.
Não gostaria, jamais, que te perdesses como eu me perdi. Por isso, temo o mais ínfimo toque, a mais lídima mácula, não te magoaria por nada deste mundo, e, no entanto, estamos destinados a tocar, a malograr, e, se não o fizéssemos, mesmo que inadvertidamente, pode ser que viesses a tiranizar muitos outros. Não gostaríamos que tal acontecesse, no entanto, também aqui ideamos um projecto de "pessoa", quando o ideal é que fosses tão "tu-mesma" quanto possível. Ai, mas o "eu mesmo" é um "outros", um contexto, um tecido amarrotado, mesmo a felicidade só é possível com um fundo, um plano, um referencial de preferências. E é por tudo isto que nunca quis ter filhos, e, no entanto, tu fazes parte do tecido com que me salvo diariamente, pudera não te transtornar com a culpa, a mesma culpa com que não poderás deixar de te fazer em qualquer coisa prazerosa. O sofrimento salva, ele é o regaço da identidade, sem o suplício da dúvida, não pode existir "indivíduo", bem como "totalidade". E eu sei disto tudo, mas continua a doer saber que a tua existência se faz de labuta, todos os dias corres, brincas, magoas, amas e desamas, armas e desarmas, é o preço daquela hora sublime em que me dizes "Já tenho três...", e eu olho para os teus "quase quatro anos" e vejo a menina que beijei no berço, naquele dia cheguei a casa e chorei, chorei a oportunidade perdida, porque eras de outra família e não podias fazer a minha felicidade... como se fosses dessa matéria, do mármore da felicitação extática, não tarda e já estás mulher, despedaçando o alheio, e eu, aqui, encardido de passado, tentando agarrar o momento imaculado, o teu, e o meu. Mas tu só a ti te pertences. E nem a ti te pertences. Como a mim não pertence qualquer certitude. Somos uns dos outros e de ninguém. E, no entanto, se pudesse raptar-te por um só dia, iludir-me neste apego por um momento infecundo... Mas amar-te, amar-te mesmo a sério, é deixar-te ir, como deixei ir a tua mãe, desta maneira matreira de "deixar ir" em que não largamos nunca o outro, o próprio, tanto faz, vás ou não vás é sempre o ego que rejubila, o meu, e o teu, o teu sendo o nosso sendo o teu, largar nunca largando, alargando a âncora da reminiscência.