Quase dois terços dos processos por corrupção foram arquivados em 2017
Os dados comunicados ao Conselho de Prevenção da Corrupção pelos tribunais revelam que houve apenas cinco condenações e duas absolvições em 408 processos-crime. As autarquias são as instituições públicas em que mais casos foram identificados, mas também as forças policiais e serviços de saúde estão na lista negra.
Quase dois terços dos processos por crimes de corrupção reportados no ano passado ao Conselho de Prevenção da Corrupção acabaram arquivados pela Justiça. Cinco resultaram em condenações e dois em absolvição, revela o relatório daquela entidade que funciona junto do Tribunal de Contas, a que o PÚBLICO teve acesso.
Em 2017, o CPC recebeu um total de 433 comunicações relativas a crimes de corrupção e conexos, na sua esmagadora maioria (408, mais de 90%) relativas a procedimentos criminais, e um número mais reduzido (25 – 5,8%) de relatórios de auditoria. Este número não representa a totalidade dos processos-crime e auditorias em curso no ano passado em todo o país – apesar da obrigatoriedade legal de o reportar ao CPC –, mas é uma amostra significativa.
Das 408 comunicações feitas pelos tribunais, 244 (59,8%) traduzem decisões de arquivamento, ou seja, “referem-se a procedimentos judiciais no âmbito dos quais não foram encontrados indícios demonstrativos da ocorrência dos delitos que foram denunciados e investigados”.
Cerca de um quinto (20,1%) correspondem a notificação de abertura de inquérito, ou seja ao início da fase de investigação criminal sobre situações suspeitas denunciadas. E outro tanto diz respeito a procedimentos criminais no âmbito dos quais foram colhidos elementos indiciadores ou demonstrativos da prática dos delitos: além das cinco condenações, houve 70 despachos de acusação (17,2%), cinco decisões de suspensão provisória do processo e ainda duas absolvições – casos em que tinha existido acusação, por indícios fortes da prática do crime, mas que não foram provados em tribunal.
No comentário a estes números, o CPC escreve no relatório: “Os elementos apresentados, sobretudo o número de decisões de arquivamento, podem sustentar, para lá de outros factores explicativos, as dificuldades da investigação criminal na recolha de provas neste tipo de delitos, remetendo-nos uma vez mais para a natureza tendencialmente oculta deste tipo de práticas”.
Mas há um outro facto que poderá ter contribuído para o elevado número de arquivamentos: as denúncias anónimas, que representam cerca de um terço (33,2%) das decisões judiciais reportadas. “Os procedimentos criminais iniciados a partir das denúncias anónimas (o grupo de maior dimensão – 136 casos) tendem a conduzir a decisões de arquivamento. Por outras palavras, as denúncias anónimas parecem tornar particularmente difícil o trabalho de investigação criminal no acesso e recolha dos indícios probatórios dos delitos sob suspeição”, lê-se no relatório.
Corrupção e peculato lideram
Mais de 75% dos crimes reportados são de corrupção e peculato (desvio de dinheiros públicos por quem os tinha a cargo), incluindo o peculato de uso, com um total de 312 comunicações. Este conjunto de comunicações representa mais de três quartos (76,5%) do total das comunicações judiciais.
“Os dados sustentam que as acções delituosas praticadas por funcionários contra os serviços parecem estar tendencialmente associadas à corrupção e também ao peculato, ou seja à relação entre o funcionário e o utente do serviço público (a relação público-privado), para o caso das práticas do tipo da corrupção, e às acções que traduzem a apropriação e o aproveitamento de bens, valores e património dos serviços, para a satisfação de interesses próprios ou de terceiros (a gestão dos interesses e bens patrimoniais públicos), para o caso das práticas do tipo do peculato”, afirma o CPC.
Dos 408 casos, 188 são relativos a corrupção, 124 a peculato (13 dos quais de uso), 42 de abuso de poder, 28 de participação económica em negócio e 14 de prevaricação. Depois há um segundo grupo de comunicações associadas a crimes com menor expressão, como o recebimento indevido de vantagem (quatro casos), tráfico de influências, usurpação de funções e falsificação de documentos, com dois casos reportados cada.
No entanto, será apenas a ponta do icebergue, sugere o relatório: “Estas tipologias de crimes tendem a apresentar uma dimensão considerável de cifras negras, dada a sua natureza essencialmente oculta e secreta, marcada por factores tão fortes como os pactos de silêncio que se estabelecem entre os intervenientes, ou a ausência de testemunhas das ocorrências”, pelo que é preciso “ter sempre algum cuidado interpretativo quanto a leituras conclusivas acerca de taxas de incidência de tipos de crime efectivamente mais ocorridos”.
Autarquias com mais casos
Juntas, as câmaras municipais e as freguesias surgiram como os focos de poder em que mais casos de corrupção foram comunicados, com os municípios a representarem quase um terço das comunicações judiciais (118 casos, 28,9%) e as freguesias contabilizando 50 processos (12,3%).
Na Administração Central, foi dada notícia de 147 processos (36%), dos quais 43 envolvem forças e serviços de segurança, 23 nas áreas da saúde, 17 na justiça, 16 nas actividades tributária e aduaneira, 14 nos apoios sociais e 12 na educação.
“Esta maior exposição decorre provavelmente de factores como a natureza das funções que são desenvolvidas, a subsistência de situações de conflitos de interesses, o exercício de poderes discricionários associados a determinadas funções públicas, bem como de situações de proximidade relacional dos serviços e funcionários com os cidadãos, como seja o caso particular da Administração Local e das forças e serviços de segurança”, analisa o CPC.
As maiores taxas de incidência verificam-se nas regiões Norte e Centro, associadas às grandes cidades: o Porto conta com 57 processos, seguido de Coimbra com 55, Lisboa tem 53, Aveiro conta 35, houve 29 casos em Braga e 21 em Leiria.
Identifica-se ainda um terceiro conjunto de entidades sob tutela pública, que representam cerca de um quinto do total dos reportes judiciais (79 casos – 19,4% do total). Deste grupo destacam-se as entidades particulares de solidariedade social (30 casos), as áreas da realização de exames para obtenção da licença de condução e de inspecção técnica de veículos (16 casos) e também as áreas relativas ao exercício das funções de solicitador e agente de execução (14 casos).
Tribunais de primeira instância sem planos
Nas recomendações com que conclui a sua análise, o CPC deixa dois tipos de sugestões. Por um lado, que se reforce a necessidade de os tribunais comunicarem àquele Conselho as decisões tomadas em julgamentos onde esteja em causa esta tipologia de crimes, “por se reconhecer que contêm elementos informativos detalhados sobre áreas e sectores da Administração Pública onde estes delitos ocorrem”.
Por outro, aponta para o reforço da prevenção, seja através da elaboração de planos de prevenção de riscos de corrupção e infracções conexas “enquanto instrumentos que permitem melhorar a qualidade e a transparência da gestão pública”, seja por mecanismos de gestão de conflitos de interesses, seja ainda por códigos de conduta e manuais de boas práticas, “instrumentos que permitem consolidar os procedimentos administrativos mais adequados no exercício de cada tarefa funcional”.
Uma chamada de atenção especial no documento visa os tribunais de primeira instância. Quando se refere a necessidade de elaborar planos de prevenção da corrupção, os relatores escrevem que “subsistem ainda determinados sectores que denotam desconhecimento deste potencial, como é o caso dos tribunais de primeira instância, já sinalizados em relatórios de anos anteriores.”