Imagina que tínhamos emigrado

Eu ia à frente, arranjava emprego ao fim de três semanas e tu vinhas quatro meses depois, arranjavas emprego ao fim de nove dias e alugávamos uma casa só para os dois

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Harsh Jadav/Unsplash

Imagina que tínhamos mesmo emigrado para Inglaterra, eu ia à frente, arranjava emprego ao fim de três semanas e tu vinhas quatro meses depois, arranjavas emprego ao fim de nove dias e alugávamos uma casa só para os dois. Imagina só, ia ser espectacular, não ia? Imagina que trabalhávamos os dois em escolas em Inglaterra e falávamos Inglês todos os dias, e falar em Inglês é tão fixe, até parece que somos importantes e não estamos aqui, ainda a viver à custa dos nossos pais e dos biscates que nos vão aparecendo, tu dás umas explicações quando calha e eu cravo dinheiro à minha mãe, que ao meu pai quem ainda tem de dar dinheiro sou eu.

Epá, mas imagina só que eu não me tinha acobardado e tinha-me feito um homem a sério, que não tinha tido medo de entrar naquele avião a 5 de Setembro de 2007 e tinha mesmo ido à vida... a nossa vida teria sido tão diferente, não teria? Até já estou a ver, viajámos de seis em seis semanas, que é quando as férias são nas escolas em Inglaterra (ainda me lembro!), voando para Portugal sempre que quiséssemos, mas também até às capitais europeias, ilhas no Mediterrâneo e, vê só, África do Sul! Mais, não nos teríamos separado, cansada que estarias de ouvir estas conversas da treta de quem, está-se mesmo a ver, nunca fez a tropa, tentando convencer-se dia após dia que a vida não é esta miséria sem fim ou sentido, onde nem tu nem eu sabemos muito bem o que por aqui andamos a fazer nem porque carga de água não há futuro para quem tanto estudou mas sem por isso pedir, ou dever, favores. Não, meu amor, não nos teríamos separado nem eu te teria batido, porque agora estaríamos casados e bem casados depois de uma daquelas cerimónias de sonho com todos os nossos amigos e tudo ao invés desse olho negro de volta a casa dos pais depois de caíres das escadas, ou assim lhes disseste (um clássico). Os miúdos? Foram contigo para não apanharem por tabela, tal a minha grossura naquela noite de Novembro.

E eu sei que não vais acreditar em mim, às vezes nem eu acredito em mim, e eu sei que nem sequer vais ler esta carta, mas se tivesse embarcado naquele avião hoje terias a casa que sempre sonhaste, juro, mesmo que não fosse grande, com dois quartos, uma boa sala, uma cozinha moderna, uns vizinhos chatos, outros não, uma garagem para eu me sujar à vontade e um ou dois pubs, daqueles bem ingleses com alcatifa vermelha ou verde, onde ao fim de semana se bebe à vontade.

E sim, já sei que agora não vale a pena, veio o Brexit e os ingleses já não querem saber de nós, mas se tivéssemos ido também seríamos ingleses, eu sempre a beber chá às 5, tu a dizer “lovely” a cada duas palavras e os dois com um passaporte britânico no bolso, sem problema nenhum e, acredita, com os dentes todos.

Por isso, e porque te quero tanto, vou fazer-me um homem e vou mesmo para Inglaterra, para Londres, porque eu gosto sempre de fazer tudo à grande (mesmo que nunca tenha feito nada, nem em pequeno, nem em grande). Já viste, nós os dois em Londres, num teatro ou num concerto, como pessoas normais com uma vida normal? Pois bem, é isso que te vou dar, vais ver, mesmo sem ter dois anos de experiência no ensino inglês, mesmo sem saber falar inglês, porque li na internet que é tão fácil, a gente chega lá e já temos um emprego à espera e dez mil libras no banco, acredita em mim, porque vai correr tudo bem e isto, a nossa vida, tem tudo para dar certo, vais ver, e um dia vamos estar todos juntos outra vez, mas desta vez em inglês. Como nos filmes.

Acordo de repente, a suar em bica. Mais um pesadelo, é sempre assim quando ligamos o aquecimento. Olho para o relógio e são quase seis, mais vale levantar-me, hoje tenho uma reunião no Civic Centre bem cedo, tu não tarda estás a caminho de Victoria Station e, já dizia a Mafalda, gostava de saber porque perde o meu inconsciente tanto tempo a sonhar inutilidades.

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