Doentes somos todos, em nossa normalidade mordida, contemos todos a nossa "patologia" no exclusivo da identidade, se, acaso, alguém ousar "rotular" a idiossincrasia que nos familiariza com o mundo, pode ser que nos doa o facto de termos passado a ser "doentes", quando, a bem ver, nada mudou verdadeiramente. Doentia é também a recente discussão envolvendo a "homossexualidade", que, na verdade, expõe muito a fragilidade das pessoas na compreensão do que satisfaz ou não o critério das "doenças".
Porque "doença" é tudo o que "dói", e "patologia" é o discurso do "pathos", do "sofrer", cada um tem o seu "pathos", o seu equilíbrio, que pode estar mais próximo ou mais afastado do equilíbrio do mundo, da média "normativa". O "anormal" é uma questão de estatística, o "patológico" é uma questão de sentimento, e de preconceito, de representação mental, de "critério", de "convenção". Houve um tempo em que a psiquiatria considerava a "homossexualidade" uma doença. A psiquiatria tem rotulado muito boa gente que, às tantas, se vê privada da liberdade de ser "algo" apartado da "(a)normalidade". Chegou a haver um movimento, intitulado "anti-psiquiatria". E há também a obra de alguns relativistas, como Foucault, que, não por acaso, era homossexual, e estudou a forma como a loucura foi tratada e gerida ao longo dos tempos.
À medida da convenção, muitas pessoas se têm visto consecutivamente "patologizadas" e "curadas" pela psiquiatria. A "patologização" culpabiliza e induz outros a culpabilizarem os portadores da "doença". A determinada altura, os que se vêem "desadaptados" poderão lutar de um modo tal para conduzirem o mundo à sua "compreensibilidade" e adaptação, que é o próprio mundo que se vê convertido à "patologia". De alguma maneira, a homofobia é a melhor amiga da homossexualidade. De tanto se ser homofóbico, pode acabar este, como a realidade, homossexualizado/a. Obviamente, o novo "normal" tenderá também a patologizar outros "anormais", dando óleo à roda da transformação condicionada do tecido social.
O patriarcado, o conservadorismo, teve sempre tendência para patologizar a homossexualidade; o matriarcado tende a despatologizá-la. O ciclo vigente é também a viagem circular entre o patriarcado e o matriarcado. De acordo com o fundo "sócio-cultural", teremos dissemelhantes modos e alvos de patologização e "normativização". É uma questão mais social do que "clínica". E a ciência "médica" ("stricto sensu"), aqui, tem pouco a dizer. É certo que existe um corpo "sexuado" e existem dois sexos, mas, tão longe das nossas origens, conta, actualmente, o género para além do sexo "originário", bem como a representação mental da "identidade" e "preferência" sexuais, que pode ter muita força e trasladar toda uma estrutura pessoal. Tentar mudar esta "estrutura" pode ter consequências dramáticas. Tentar "mudar" estes indivíduos é, já por si, projecção de um preconceito, de um dogma "paternalístico".
A psicanálise, que, a determinado nível, se recusa a apartar o "normal" do "anormal", dogmatiza sua posição "patriarcal", firmando o papel da identificação materna, edipiana, do rapaz homossexual; assim, fica a homossexualidade "psico-neurotizada", o que, a bem ver, nada acrescenta à coisa. Compreender um mecanismo não "patologiza" necessariamente o mesmo, não prescreve uma necessária mudança, nem "a-mal-diçoa" a "doença". É certo que a psicanálise importancionaliza o papel da "diferenciação sexual". E há, presentemente, muitos psicanalistas que pretendem forçar este processo. Mas este acto depreende uma interpretação pessoal, pois é certo que poderíamos entender a "identificação materna" como uma outra forma de "identificação sexual", nem "boa", nem "má", simplesmente "diferente". Mesmo existindo a possibilidade de "heterossexualizar" o "paciente", fazê-lo implica uma escolha, que deve partir sobretudo do paciente, escolha que o não é, porque o último "escolhe" com base numa experiência pessoal ancorada numa sociedade mais ou menos marcada pelo preconceito, por determinadas representações da "sexualidade" e pelas consequências destas. Ninguém escolhe seja o que for. Ninguém escolhe seguir a tendência "normal" ou contraditar corajosamente a mesma. A legitimidade da "escolha" é uma mera questão de contexto. A actividade de um psicólogo/psiquiatra/terapeuta tem sempre algo de violento e intrusivo, por mais que se respeite o intuito do paciente. Há modos diversos de sugestionar uma "escolha", há medidas para diferentes interpretações.
Assim sendo, nem interessa decidir se a "homossexualidade" é ou não uma "doença". "Doença" é aquilo que assim se considera. Boa parte da doença, do "sofrer", dos homossexuais provém da "desadaptação" social, tão-só. Perante isto, ou o homossexual se adapta ou puxa a sociedade para se adaptar a ele, e não é legítimo pensar que um modo é "melhor" do que o outro, porque o "bem" vs. "mal" é simples questão de juízo, e este depende das variáveis sociais em jogo. De resto, ser "doente" não implica obrigatória intervenção "clínica", nem "social", ninguém é obrigado a aceitar o "doente", talvez exista, sim, a obrigatoriedade de "tolerar". Todos os dias toleramos o "pathos" de cada um, tem sido esta a normalidade da coisa. Obviamente, no tempo da "pós-verdade", é possível que a "normalidade" também mude. É que, na verdade, não há fórmulas "superiores", tudo depende das variáveis vigentes. Pedir de empréstimo um modelo, uma "lei", um pressuposto, constitui, somente, um pedido de socorro aos "deuses" em nome da "identidade" pessoal. Porque é suposto sermos "algo", e, já agora, no acordo com alguma "normalidade".