Nas Famílias de Acolhimento Temporário o amor pelos animais não tem limites
Acolher, cuidar, alimentar, afeiçoar-se, às vezes ver morrer. No fim, quando tudo corre bem, ver partir. As Famílias de Acolhimento Temporário são uma ajuda fundamental para muitas associações e porto seguro de muitos animais. Mas a missão “não é para todos”
Os pulos de felicidade com a presença humana fazem parecer muito distante o cenário ali chegado há apenas quatro dias. A narrativa não é inédita para Luísa Rocha: em matéria de maus tratos a animais, já ouviu e testemunhou quase tudo. Ainda se espanta e revolta como nos primeiros dias mas, numa estratégia de auto-defesa, procura manter-se longe de pormenores. Há dias, quando aceitou acolher em casa cinco cães bebés a precisar de cuidados ao minuto, não pôde, no entanto, passar ao lado da história. Os cachorros recém-nascidos que entravam na casa dela naquele momento tinham sido fechados dentro de um saco de plástico preto e atirados de um carro em movimento. Vinham com patas e narizes “completamente estourados”. Um deles, “rebentado por dentro”, acabou por morrer passado 24 horas no colo da filha mais nova de Luísa. Os outros, recuperam aos poucos.
Estamos na casa de uma FAT — Família de Acolhimento Temporário, lar de passagem para animais abandonados, mal tratados ou perdidos e recém-nascidos órfãos a precisar de “pais” humanos. Por aqui, o rebuliço de emoções é “permanente” e a “missão” uma mistura de conjugações verbais, algumas de difícil digestão: acolher, cuidar, alimentar, afeiçoar-se, às vezes ver morrer, no fim, quando tudo corre bem, ver partir. “Não é para todos”, diz Luísa enquanto alterna o biberão de leite entre dois gatos bebés com 48 horas de vida, ainda com os olhos fechados e cordão umbilical.
A contabilidade está por fazer. Por ser uma actividade voluntária, ninguém sabe quantas pessoas serão famílias de acolhimento temporário em Portugal. Sabe-se que são um suporte fundamental no trabalho de associações e grupos informais de apoio animal — e que a procura por estes portos seguros é seguramente maior do que a oferta. No Cantinho do Tareco, associação com sede na Maia, a “bolsa” de famílias tem apenas um dígito: são seis e só uma, a de Luísa Rocha e das duas filhas, acolhe recém-nascidos órfãos. Para esse papel, a disponibilidade tem de ser total: os gatos têm de ser vigiados, amamentados de três em três horas (inclusive durante a noite) e “estimulados”, com algodão húmido ou toalhetes, para conseguirem urinar ou evacuar (as mães gatas fazem este “trabalho” lambendo os filhos, sem uma “imitação” desse gesto os animais morrem).
Luísa Rocha não tem formação na área, mas leva mais de vinte anos a acolher e cuidar de animais. Com apenas dez, escapava às aulas para passar horas numa clínica veterinária perto de casa. O médico de serviço, amigo dos pais, deixava-a andar por lá e ela aprendia, atenta: assistia às operações, fazia curativos, administrava vacinas. “Chegavam ao ponto de me dar gorjetas”, graceja. Em casa sempre teve animais, mais por “imposição” dela, a mais nova de três irmãos, do que por escolha parental. Um dia, apareceu na escola um cão perdido e ela levou-o para casa, noutra altura recolheu uma coelha anã e teve-a debaixo da cama, sem os pais perceberem, durante uma semana, gatos bebés eram presença habitual. Aos poucos, a própria clínica recorria a ela: “Ligavam-me a dizer que tinham um gatinho e a pedir para cuidar dele. Chegava lá e era uma ninhada. Não tinha coragem de trazer só um.” Naqueles anos, as redes sociais não eram ainda a valiosa ajuda de hoje. Mas ela desenrascava-se: “Os meus pais chegaram os ponto de ter de pôr anúncios nos jornais: ‘Dão-se gatinhos’.”
De uma forma “natural”, a rede foi sendo criada: as associações pediam-lhe ajuda, alguns particulares também e a casa dela foi ficando de portas abertas. “É uma entrada e saída constante de animais. Não tem limites. Às vezes penso em fazer uma pausa, mas se me ligam a pedir ajuda não tenho coragem de recusar.”
Manuela Melo conhece bem a sensação. Se vê um cão ou gato mal tratado ou abandonado, não consegue ficar indiferente. Se lhe pedem ajuda, não consegue dizer não. “Afecta-me muito pensar num bicho mal, não queria que me afectasse assim.” Manuela cresceu sem animais e, até há dez anos, nunca quis ter nenhum — parecia-lhe darem demasiada despesa e trabalho. Numa ocasião, com a filha adolescente a viver um momento de depressão, decidiu tentar o “poder curativo” dos gatos. Foi a uma clínica para adoptar um e, quando lá chegou, deparou-se com dois: “Um preto e branco muito bonito e um preto escanzelado. Pensei: ‘Se deixo o preto ninguém o vai querer’. Então, trouxe os dois.”
Foi como se uma caixa de pandora se abrisse. Não passou muito tempo até lhe aparecerem quatro recém-nascidos numa caixa de cartão à porta de casa. Depois mais três. A seguir uma gata grávida. Aprendeu a cuidar deles, a “voltar a ser mãe”, e tornou-se conhecida na clínica veterinária vizinha, a AnimaisVet. “Começaram a pedir-me ajuda com alguns bebés”, conta, enquanto vai afastando as unhas felinas do sofá — “É verdade que destroem muito, mas que importa?”.
A hora da despedida
O drama maior de Manuela Melo, 47 anos, são as despedidas. O número de moradores residentes lá em casa foi crescendo à conta do aperto no coração na hora de os entregar. Lembra-se perfeitamente do primeiro gato que deu, um preto e branco: “Fui o caminho todo a chorar. A senhora a dizer que ia tratá-lo muito bem e eu chorava e chorava.” Agora, “mais mentalizada para esse dia”, já não sai tão lavada em lágrimas. “Continua a custar. Mas fico feliz quando vão para uma família cinco estrelas.” Manuela, desempregada há cerca de um ano, abre o computador e a página pessoal do Facebook para se fazer entender: “Veja estes a dormir na cama da dona. Só posso ficar feliz.” Na rede social, mantém contacto com a maioria das “talvez cem” famílias a quem já entregou gatos. E assim acalma o coração.
“Não é para todos.” António Manuel, da direcção da Miacis — Protecção e Integração Animal, repete-nos a frase ouvida na casa de Luísa Rocha. Ser Família de Acolhimento Temporário é uma “missão” para a qual nem todos têm capacidade: “Eu faço tudo, ajudo de todas as formas, mas FAT não consigo ser”, admite. “Se um animal entra em minha casa já não consigo que saia.” Para a associação criada em 2013, e particularmente focada na esterilização de animais em risco (já o fizeram com mais de quatro mil), estas famílias são de “extrema importância”: sem abrigo próprio, a Miacis conta apenas com elas e com os voluntários para recolher animais.
Têm cerca de 15 lares a quem apelar e não é nada fácil fazer este número crescer. “É preciso muita disponibilidade. E um altruísmo gigante. Até porque quando pedimos ajuda não sabemos se o animal vai demorar dois dias, duas semanas ou dois anos a encontrar um dono”, diz, dando o exemplo da Luni e da Terinha, duas gatas adultas cuja dona, uma senhora de idade, foi institucionalizada e que foram abandonadas na rua pelos filhos. “Estas gatas foram para uma FAT e como eram inseparáveis tínhamos de encontrar alguém que adoptasse as duas. Não foi fácil.”
Numa boxe na cozinha de Luísa Rocha, os quatro cachorros bebés ganham forças. Olaf, um gato preto com porte de respeito que adopta todos os bebés que ali chegam, recupera de um atropelamento. Numa transportadora, uma pomba refaz-se de um ataque de gaivota. Num quarto já ali ao lado, dois gatos tigrados com dois meses estão a dias de sair para adopção e, no compartimento a seguir, uma gata selvagem amamenta os seus quatro bebés e mais três adoptados. Na sala de estar, nove pequenos felinos já correm e brincam — mais um mês e poderão encontrar uma família definitiva. Ali perto, na mesa, duas cestas de verga amparam os mais bebés: uma ninhada de dois, com apenas 48 horas, e uma de três, todos pretos, com menos de duas semanas.
Passado dois dias de o Pet ter visitado a casa, um dos três pretinhos morreu. Tinha um vírus, contagioso, e a família virou de pernas para o ar. Luísa vai agora fazer testes em todos — incluindo os três permanentes da casa, todos salvos da rua: Pipokas, uma gata com 19 anos, Bijouh, uma tricolor de 12, e Clif, um paciente cão cocker preto. “Quando nos morre um animal é horrível. Sinto como uma falha minha.”
“Não é racional” a escolha de ser Família de Acolhimento Temporário, diz Luísa Rocha: “É pensar com o coração e gostar deles em dobro.” Desempregada há um ano, e formada em Turismo, já ponderou algumas vezes fazer um curso na área animal. “Já tive papéis nas mãos para me inscrever. Mas nunca me decidi”, sorri. Sobre o número de animais que deu para adopção, perdeu a conta — “mas foram centenas, seguramente”. No porto seguro dos bichos, sente-se também em segurança. Talvez seja isso que a faz continuar: “Eles nunca nos enganam. Dão tudo sem exigir nada em troca.”