O desaire causado pelos ataques a que assistimos em vários pontos do mundo e o facto de vivermos a modernidade através do “ecrã global” de Lipovetsky levanta questões fundamentais sobre intenções e inércias. Para muitos, as redes sociais servem como meio de expressão da mágoa. Outros vivem num estado pleno de desinteresse (porque é longe e não matou nenhum dos nossos!). Os restantes impulsionam manifestações de horror em prol de direitos que nem compreendem na sua essência. Mas há, hoje, uma linguagem que parece ser universal: "Je suis quelque chose". Expressão dos muitos, dos outros e dos restantes. Atente-se à distinção.
“Je suis Charlie” tornou-se muito mais do que uma referência ao Hebdo. O slogan criado por Joachim Roncin em resposta ao ataque de 7 de Janeiro de 2015 no qual 12 pessoas foram mortas na redacção do jornal satírico francês "Charlie Hebdo", torna-se símbolo de indignação e manifestação a favor da liberdade de expressão. “Je suis Charlie” tornou-se muito mais do que uma referência a este dia fatídico. Dois dias depois do 7 de Janeiro, o #jesuischarlie tornou-se um dos "hashtags" mais utilizados na história do Twitter. Porquê? Importa analisar quais são os motivos para este "slogan" se ter propagado pelas bocas do mundo moderno — as maravilhas da tecnologia, senhores — e se tornou um ícone que é hoje usado em várias situações, em várias desgraças, por várias liberdades.
Estratégia inteligente, "marketing" puro e duro. Resulta muito bem, entranha-se. Por muito que nem todos tentem compreender, na sua essência, o significado deste lema, interessa a intenção de manifestar solidariedade pelas vítimas passadas, presentes e futuras. O mundo digital incentiva a esta onda empática: se um se manifesta, dois manifestam-se a seguir. Ora, de que forma poderemos encarar esta questão? Há quem pense nisto (os muitos); há quem não pense em nada (os outros); há os que pensam em muito e decompõem, enegrecem, destroem (os restantes). Devemos conhecer e optar. Optamos pelos muitos, pelos outros ou pelos restantes? Acreditar que as pessoas são solidárias, são ignorantes, ou são odiosas? Optamos. Somos muitos a sentir empatia, compaixão e raiva por arrancarem flores ao jardim com uma tesoura de poda gigante. Brutalidade, corpos inanimados e gritos de crianças chocam e mobilizam. Somos muitos.
Os outros não pensam nada, não querem saber "rien de rien" e acreditam que o “Je suis Charlie” serve só para capitais europeias ou ataques a personalidades marcantes. Ancara; Ouagadougou; Charsadda; Bruxelas; Istambul; Jacarta. Não podemos preferir vítimas. Não gostamos mais de uns mortos do que de outros. Não sou mais Bruxelas do que Jacarta.
Quanto aos restantes: o nosso ódio não deve vencer batalhas. Não é com conversas de guerrilha que vamos lá. Os ícones e os símbolos, tal como nos revela a história, são usados por pessoas com diferentes perspectivas e objectivos, muitas vezes divergentes. Pessoas! As pessoas e o abstracto, o subjectivo e o substrato. O ódio não pode vencer, nem a descrença na colectividade.
“Je suis Charlie” representa a noção de que o mal ganha batalhas, de que somos impotentes por muito que o espaço e o tempo tenham encolhido. Mas representa a solidarização de muitos. Representa lágrimas de dor pelos que foram e temor pelos que ficam. Ainda há quem se importe. Quem saiba que pouco pode fazer, mas sente os infortúnios e manifesta-se com as ferramentas que tem ao dispor. Optarei pelos muitos. Não quero crer nos outros nem nos restantes ou dar-lhes, sequer, o poder da proliferação da descrença. Somos seres humanos com medalhas e com reversos. É uma questão de escolha.
Ainda somos muitos. Muitos que nos pomos na pele dos outros. De quem fica, de quem sofre, de quem desespera. "Je suis toutes les victimes". Isto é ser o Charlie. E os semelhantes. Os mortos e os vivos. Quando a desgraça se abate a pele que vestimos é a dos que sofrem. Este é um dos motivos. O motivo que eu escolho salientar. A pele que é dos outros, mas que nós decidimos vestir. Os muitos.