"Mein Kampf": publicar o livro de Hitler é disseminar o ódio

Deverá uma comunidade tolerar passivamente a divulgação de uma ideologia discriminatória?

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Fabrizio Bensch/Reuters

"Mein Kampf" — o livro que Hitler escreveu durante a sua reclusão por traição após a Primeira Guerra Mundial e que serviria de guia para a fundação do Terceiro Reich — será esta semana distribuído em Portugal, em versão anotada e dividida em dois volumes, juntamente com uma revista. Em breve, será editado e estará disponível no mercado, 40 anos após a primeira edição portuguesa, que foi baseada numa edição brasileira. Recorde-se que o texto está em situação de domínio público desde 31 de Dezembro de 2015.

Contudo, continuará a ser proibido editar o texto na Áustria e na Holanda, por exemplo, países radicalmente modificados e negativamente marcados pela ocupação nazi. A proibição justifica-se pelo facto de "Mein Kampf" ser uma obra panfletária que incita ao anti-semitismo ou, noutros termos, uma obra que apela à discriminação racial dos judeus.

Eticamente, a (re)distribuição do texto em Portugal é uma aberração e merece ser apontada como tal. Nesta afirmação nada há de censório: a obra sempre esteve disponível na web, em várias traduções (mais ou menos fidedignas), para quem a quisesse "sacar" e ler; por isso, é simplesmente ridículo achar que se possa exercer censura sobre o título em causa.

O ponto é que não se trata de uma questão de liberdade de expressão, mas da disseminação de ódio racial contra os judeus através da palavra. A pergunta que deve fazer-se é esta: deverá uma comunidade tolerar passivamente a divulgação de uma ideologia discriminatória? E aqui merece relevo o facto de não se tratar de uma qualquer discriminação, antes da discriminação que originou a Shoah ou Holocausto, ou seja, milhões de vidas ceifadas das formas mais hediondas ao abrigo do que o regime nazi designou de "Solução Final para os Judeus".

A resposta só pode ser uma: não. Ainda que mais nada o fizesse, sempre a decência dita que não se dê voz a obras que apelem à submissão de uma parte da Humanidade a outra, nem à superioridade de um ser humano em relação a outro, muito menos ao extermínio de um povo. A própria lei o proíbe, sem que seja necessário constar expressamente de uma norma que é vedada a divulgação de "Mein Kampf": há uma proibição geral de discriminação e vários outros argumentos jurídicos com que a extensão de um texto da natureza deste não se compadece.

Não se ceda à tentação de invocar a democracia para tentar justificar o injustificável: um democrata tem de saber, obrigatoriamente, a diferença entre liberdade de expressão e disseminação do ódio, tal como tem de saber que nunca a segunda poderá ser defendida invocando a primeira.

Bem sei que se pode argumentar que o que defendo esbarra no facto de o livro estar acessível na web e em muitos outros sítios, mas também sei que não é por isso que devo deixar de dizer o que tem de ser dito: a republicação do livro em Portugal merece o meu inteiro e veemente repúdio.

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