Crónica de uma morte anunciada

O David tinha a vida pela frente. Independentemente da sua idade, porque mesmo aos oitenta temos a vida pela frente. O David tinha a vida pela frente e tiraram-na. Em consequência, uma série de administradores hospitalares demitiram-se. Tarde demais.

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Logan Popoff/Unsplash

Um jovem morreu nas urgências de São José. Vítima do rompimento de um aneurisma, não teve a assistência neurocirúrgica precisa porque a equipa médica em questão não se encontra disponível ao fim de semana. Como se fosse possível escolher a altura em que uma emergência médica nos coloca entre a vida e a morte. Infelizmente, quem gere centros hospitalares não partilha da mesma opinião e, por conseguinte, se vos der para terem um AVC, rompimento de um aneurisma, ataque cardíaco, um acidente automóvel ou qualquer outro acidente responsável pelo comprometimento das vossas funções neurológicas, por favor não o façam à Sexta, ao Sábado ou ao Domingo, porque não vão ter quem vos acuda.

O rompimento de um aneurisma é uma emergência médica, a qual pode levar à morte do paciente em sessenta por cento dos casos. Ergo, carece de acção imediata. Os médicos em São José assim não o entenderam. Ao invés, diante de um jovem às portas da morte quando o relógio ainda apontava a Sexta-feira, acharam por bem marcar uma cirurgia para a Segunda-feira seguinte. Em termos de assistência médica, ou da falta dela, trata-se, pura e simplesmente, de um caso grosseiro de negligência médica. Em termos jurídicos, estamos a falar de um assassinato. Porque ao recusarem assistir um paciente entre a vida e a morte, porque ao recusarem procurar por alternativas, independentemente do seu custo, porque ao recusarem pedir ajuda para poderem ajudar quem de ajuda mais precisa, violaram o juramento hipocrático por si proferido no dia da formatura médica, deixando por isso mesmo de ser médicos para passarem a vestir a batina de carniceiros tecnocratas cujo único propósito se centra na contenção de custos, custe o que custar.

Desde Dois Mil e Catorze que se sabia não haver equipa de neurocirurgia disponível ao fim de semana no Centro Hospitalar de Lisboa. Mais, em Dois Mil e Catorze alguém tomou a decisão de retirar tal assistência do Centro Hospitalar de Lisboa. Estamos cheios de sorte! Porque, felizmente ou infelizmente, levou quase dois anos para que morresse alguém. Crónica de uma morte anunciada. Dois anos durante os quais, estou certo, o estado poupou bastante dinheiro. É lamentável, porque o dinheiro não só não se come, como não restitui os mortos à vida. Capitalismo? Capitalismo, de facto. E porque tudo tem um preço, pelas decisões de uns, um jovem de vinte e nove anos pagou com a vida.

O David tinha a vida pela frente. Independentemente da sua idade, porque mesmo aos oitenta temos a vida pela frente. O David tinha a vida pela frente e tiraram-na. Em consequência, uma série de administradores hospitalares demitiram-se. Tarde demais. Acho muito bem que o tenham feito, mas lamentavelmente as suas decisões pecam por tardias: o mal não só está feito como é irreversível. E neste momento de pouco me importa se uma série de administradores hospitalares se demitiram. Neste momento, importa-me, isso sim, saber quem mais pagará pelas asneiras dos outros: se os médicos, com a prisão devida, se nós todos, com a vida.

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