Na mochila, levou uma edição de "O Padrinho" de Mario Puzo, marcadores, um caderno, uma câmara fotográfica com rolo (dos verdadeiros) e um guia com as 10 melhores coisas da Sicília, a ilha que baptizou AKACorleone sem que, para isso, o ilustrador de 30 anos tenha alguma vez pisado o seu solo. Até agora, pelo menos.
À boleia do The Jaunt, Pedro Campiche aterrou sábado, 21 de Novembro, em Catânia, Sicília. Lá ficará até esta sexta-feira. Sem agenda, só a ver coisas novas, viver coisas novas. Quando regressar, terá de fazer uma serigrafia inspirada pela viagem, um trabalho que foi previamente comprado, sem nunca ter sido visto, pelas dezenas de pessoas que assim financiaram a sua partida. Eis a magia do The Jaunt, projecto inventado em 2013 pelo holandês Jeroen Smeets, que leva artistas de todo o mundo a passar uns dias em qualquer outra parte do mundo, simplesmente para se inspirarem.
Pedro é o primeiro artista português a ser convidado para uma destas viagens. Escolheu Sicília, por "uma razão sentimental", conta, em entrevista ao P3, em vésperas da partida. A três horas de Catânia, a segunda maior cidade da ilha, fica Corleone, o berço da máfia que baptizou o seu alter-ego, AKACorleone. "O meu pseudónimo vem daí. O mundo da máfia, com todos os códigos, sempre me fascinou, e toda a história nasce naquela ilha. Sei que era daqueles sítios que tinha de ir uma vez na vida — mesmo sabendo que não me vou deparar propriamente com esse cenário."
As viagens são escolhidas em conjunto, pelos convidados e pelo curador holandês, tendo em conta um orçamento e o estilo artístico. Neste caso, Jeroen até tinha sugerido o Cazaquistão, mas Pedro lá lhe explicou que "em Novembro nenhum português sobrevive às temperaturas siberianas". Avaliando esta proposta de destino já dá para perceber onde o holandês quer chegar quando diz que, com este projecto, quer "tirar os artistas da zona de conforto". Porque mesmo um artista pode ficar preso no dia-a-dia, de casa-estúdio-estúdio-casa. "Não os levo para sítios onde não querem ir, mas gosto de os levar a locais onde não se imaginaram antes", diz, ao telefone com o P3 a partir de Copenhaga, onde vive. Um artista, por exemplo, tinha em mente a América do Sul; acabou na Letónia. "Foi a terceira viagem do The Jaunt e ele continua a falar disso até hoje, que foi 'open minding'".
Cinco dias em cafés a desenhar
Planos para estes dias na Sicília? Pedro não tem nenhuns. "O projecto funciona assim: vais para uma realidade diferente e o objectivo é explorares ao máximo, absorveres tudo, desenhares, tirares fotografias." A viagem é a pesquisa, o ponto de partida para as ideias. Numa viagem anterior a Antuérpia, por exemplo, um artista passou os dias sentado em cafés a desenhar. "Ele adorou. Não falou com ninguém, não viu nada. Apenas se sentou a desenhar. Mas era o tempo que ele não tinha em casa", explica Jeroen. E é isso o que, para Pedro Campiche, torna o The Jaunt numa plataforma "única". "Eu nunca tenho tempo para parar", admite o ilustrador. "E não é todos os dias que alguém decide levar-te a uma cidade à tua escolha só para te inspirares." Graças ao seu trabalho, viaja muito ("felizmente", mas nem sempre conhece os locais onde está, o que pode ser um bocado "frustrante". "Estive 12 dias nas Filipinas e não vi absolutamente nada. De Manila, só conheço o caminho do hotel para a parede [onde estava a fazer um mural] e do hotel para a parede."
Portanto, uma viagem sem agenda, com a inspiração como único propósito, torna-se uma forma de "liberdade incrível". E não só. Pode ser assustadora q.b.. "Acho que nunca tive uma viagem como esta. Não conheço ninguém, não vou encontrar-me com ninguém. Vou cinco dias para uma terra que me fascina." Hedof, o primeiro artista convidado para o projecto e amigo pessoal de Pedro Campiche, disse-lhe que se tinha sentido "incrivelmente sozinho" em Helsínquia. "Eu não faço ideia se me vou sentir ou não desconfortável. E isso faz parte."
Há também alguma pressão à mistura: as serigrafias que foram postas à venda já estão quase a acabar. Há um público que, de antemão, confiou no trabalho, no destino, no projecto, que compra uma obra sem a ver primeiro. Uma relação que, conta Jeroen, se estabeleceu desde a primeira viagem, em Abril de 2013 (curiosamente a segunda, em Junho desse ano, foi ao Porto). São sempre colocadas em pré-venda 50 serigrafias, dando exemplos de trabalhos anteriores dos artistas. "Não há empresas envolvidas, fundos, governos. Todo o projecto é financiado pela pré-venda dos 'prints'. Eu não sabia se as pessoas iriam confiar nisso, se iriam comprar obras que ainda não existiam." Correu bem: "Na primeira viagem, as 50 esgotaram em duas semanas." E assim continua até hoje. "As pessoas confiam em nós."
O The Jaunt é, para Jeroen, um "catalisador criativo" para os artistas. "Espero que levem algo para casa que possam usar durante todo o seu trabalho. Uma mudança de atitude em relação a pessoas, sítios, ao próprio trabalho." Começou este projecto há dois anos dentro da agência de arte que dirige porque queria que os artistas tivessem a oportunidade de experimentar projectos sem fins comerciais. Dar-lhes uma "plataforma" para "fazerem o que realmente querem fazer, enquanto viajam pelo mundo".
Até hoje, já lá vão 19 viagens e um livro. No final de cada ano, Jeroen faz uma selecção de artistas que têm um trabalho interessante e que se enquadram no perfil, que partilham, de algum modo, uma "energia criativa". É ele que faz os convites, que assina a curadoria. Não há nenhum processo de candidaturas aberto, mas, claro, recebe muitos e-mails e está sempre com os olhos abertos — o próprio Pedro Campiche chegou a contactá-lo duas vezes. Por isso, deixa um conselho, a "quem gosta deste tipo de ideias, de viajar e abrir os horizontes: vale a pena ser chato e insistir nas coisas." A viagem à Sicília pode ser acompanhada no blog do The Jaunt, no Facebook e no Instagram. A próxima paragem já tem nome: Belize, na América Central, com Tim Biskup. Boas viagens.