Seis e meia da manhã, a garota aparece na cama para me puxar o nariz e as orelhas, abro um olho. “Já é dia Tiago!” diz-me ela, sem respeito nenhum. A tua sorte é que dormi cinco horas (para mim chega), deito-lhe a língua de fora e cuspo um ‘bbbbbrrrrrr’, ela ri-se tanto que projecta a chucha.
Escorregamos para fora da cama, eu meto barroco porque o Vivaldi acalma a fera, ela dança no vestíbulo enquanto eu nomeio a marcador a casca da banana que ela há de comer ao almoço. Verto a água a ferver, dentro e fora das marmitas, aqueço-lhe o rango. Um café a ferver e um cigarro janeleiro pelo meio. Ela exige desenhos animados, eu digo-lhe que é “tolinha” com o indicador encostado à testa, ela ri-se mais, pobretes mas alegretes, valha-nos São Carlos de Trier!
Os gatos correm frente e verso da casa, o sol entra pelo norte, lavo-lhe a cara em cima da tropeça, chavascal na casa-de-banho, recuso-me a discutir a roupa que ela vai levar. “É só casca!”, afirmo-lhe peremptório, ela não percebe mas cala-se na mesma. Acho-me extraordinariamente acordado e bem-humorado para quem tem a mulher a 1.500 quilómetros.
Descemos as escadas com ela a comentar muito alto as paredes escalavradas do nosso velho prédio (é o doce do avô arquitecto esta criança), ameaço-a com o cão da vizinha: “Se acordas o Ringo ele vem e morde-te o rabo!” (a madrinha pedagoga havia de me bater se soubesse). O vizinho de baixo empurra os próprios gaiatos porta fora, trocamos os grunhidos e acenos de cabeça que os adultos partilham a estas más horas.
Saímos finalmente, semicerramos os olhos claros à luz dura da manhã, o Fernando da drogaria ainda não abriu mas já está à porta, o Gil empilha caixas no escaparate do Ferreira da fruta, a educadora fuma à porta do café do canto mas eu faço questão que a criança a deixe sossegada, há lá pior do que alunos a perturbar os cinco minutos antes da aula. Toda a gente tem um ar admiravelmente acordado, estão todos mais bonitos ou é só a primeira cafeína a bater-me o cérebro?! Toda a gente me parece com melhores cores, a Carmen berra aos gaiatos à entrada do infantário, só os pais mal-acordados é que não se riem (e a severa senhora da portaria, mas mesmo ela parece mais jeitosa pela manhã, maquilhagem verde sobre as pálpebras, muito Abba). Largo-lhes a cria, atravesso a estrada para cá outra vez, acendo o cigarro, subo a casa, acendo a televisão não sei porquê, a horrorosa "consultora astrológica" deita cartas na "SIC", sabe de tarot como eu de macramé o raça da bruxa (o baralho é bonito, mal empregado). Mudo para a "Etv" para me assegurar que ainda há gente feia.. ahhh cá estão eles, feios e ovinos, a tocarem-se ao som da eficácia dos mercados, valha-nos alguma coisa!
Os gatos miam, ele quer torneira aberta, ela quer só sublinhar a sua intensa sensualidade, eu ignoro-os com um aceno desdenhoso. Abro cortinas e janelas, mulher e miúda fora é tabagismo à bruta cá em casa (na sala, vá), escrevo-vos. Música alta apesar de mal serem nove, já fomos piores: antes da garota tínhamos uma vizinha que todas as noites de sábado chamava a patrulha (e nós só a beber café com meia-dúzia de amigos vejam vocês!).
Uma bolseira e um desempregado que escreve ‘pro bono’ para o jornal, com uma criança e dois gatos, ninguém sabe como é que comemos todos os dias. Se o Pedro e o Paulo nos apanham mandam-nos logo para a reeducação. Ainda por cima somos bonecos, grande porra!