Na senda da crónica de João André, aqui publicada no mês passado, e principalmente na senda dos infelizes comentários recebidos, redijo este texto.
Recordo-me de, há uns anos, estar a discutir o “Evangelho segundo Jesus Cristo” e receber de alguém a observação de que o parto de Jesus era descrito por Saramago de uma forma suja e feia. Já na altura eu não considerava a imagética associada aos partos como algo sujo e feio. Hoje, considero sujo e feio a forma como a maior parte dos progenitores encara a criação dos seus filhos.
Quando alguém manifesta a sua vontade de não se reproduzir, há quem se apresse a predicá-lo de egoísta, pois está a negar a vida a alguém. Ora, como pode alguém negar a vida a uma pessoa que não existe; que é uma mera abstração enquanto tal, até que nasça?
Ser pai é uma tarefa hercúlea, e a vontade de se reproduzir enquanto pessoa, e não só fisicamente, no decorrer do processo de educação e criação de um filho, é demasiado tentadora. Quer-se sempre transmitir ao filho os valores próprios, as ideias próprias, quer-se fazer do filho uma réplica de si mesmo. Algo que representa a mais vil forma de exercício de poder sobre outra pessoa.
No caso de uma mulher, esta problemática é ainda mais gritante. A cultura educa-as para valorizarem a sua capacidade reprodutiva como um aspeto essencial da sua construção pessoal. Uma das principais formas de valorar uma mulher culturalmente (e isto é transversal a praticamente todas as culturas humanas) é através da sua capacidade de parir. E, perniciosamente, as mulheres facilmente enveredam neste esquema, até porque são também ensinadas a valorizarem-se apenas através de juízos alheios e a gravidez faz virar todas as atenções rodeantes para elas.
Para além disso, é irresponsável trazer um ser senciente a este mundo para sofrer. Digo isto porque se a vida já de si implica necessariamente momentos de profundo sofrimento para qualquer ser capaz de estabelecer uma relação empática com outros, ainda pior o será neste mundo, e particularmente neste país, que não tem mais a oferecer à maioria dos seres humanos do que miséria, física e psicológica.
Quando, após terem tido um filho, os pais se apercebem que a tarefa da qual foram incumbidos é demasiado complexa para a sua disposição e capacidades, tornam-se moralistas e não admitem que outras pessoas escolham livrar-se dessa sevícia, até porque numa cultura judaico-cristã parece mal querer sofrer menos do que é imposto coletivamente.
Entre os homens e as mulheres que não querem ter filhos, existe uma diferença de abordagem. Ao homem, primeiro é dito que é algo que lhe passa com a idade, mais tarde que é uma pessoa independente e de pensamento original. A mulher é, no imediato, marcada a ferro ao rubro com o estigma de anticristo. E, então, se não integrar os preceitos familiares culturalmente determinados é o próprio demo. Mas, esse assunto deixo para uma próxima crónica.