Aborto: não meter o nariz no útero alheio, se faz favor

A anulação da gratuitidade da interrupção voluntária da gravidez legalmente estabelecida, implica que as mulheres economicamente menos favorecidas deixem de lhe ter acesso

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Na senda de uma notícia que foi recentemente divulgada pelo jornal Público, parece haver ainda muita tinta e discussão a correr sobre um assunto que parecia encerrado, no que toca a legislação, visto ter sido a vontade do povo português auscultada para o efeito.

O movimento de cidadãos “Direito a Nascer”, com a conivência e o apoio da Igreja Católica, neste caso na figura de D. Manuel Clemente, pretende, entre outras coisas, que a interrupção voluntária da gravidez até às doze semanas (como está legislado) deixe de ser gratuita, que as mulheres que pretendem abortar sejam acompanhadas por profissionais da área da psicologia, que devem ver as ecografias antes do aborto, que os pais devem poder participar na decisão e que as mulheres que abortem devem deixar de gozar de licença paga a 100% pela Segurança Social.

Tudo resumido num rol de propostas abjetas, que demonstram uma autêntica prepotência moral da parte de quem pretende que sejam implementadas, e uma tentativa abusiva de exercício de jugo sobre as gónadas femininas, que pretendem que passem propriedade pública.

Senão, vejamos. A anulação da gratuitidade da interrupção voluntária da gravidez legalmente estabelecida implica que as mulheres economicamente menos favorecidas deixem de lhe ter acesso. Para o caso de o grande público já se ter esquecido, antes do referendo havia estatísticas relativamente ao elevado número de mulheres que praticavam abortos clandestinos, com todos os riscos que isso acarreta, inclusivamente para a sua própria vida. O acompanhamento psicológico, assim como a obrigatoriedade de tomar contacto com a ecografia do ser em desenvolvimento, representam exercícios de opressão moral sobre alguém que tomou uma decisão que implica a manipulação do seu próprio corpo. A possibilidade de participação dos pais na decisão implica novamente a apropriação por parte de outrem do aparelho reprodutor feminino. A questão da quebra nos benefícios sociais traz uma carga adicional para as mulheres desfavorecidas, tanto do ponto de vista económico como laboral.

Todas estas propostas representam claramente a aniquilação do poder da mulher sobre o seu útero e a sua redução a uma máquina de combate de questões demográficas, num país em que as pessoas se lamentam mais rapidamente da quebra da natalidade do que observam as condições altamente precárias para poder suportar uma criança. Outro aspeto que os movimentos pró-vida tendem a ignorar, dando mais importância à existência e aos direitos de um ser que, segundo a lei, carece ainda de personalidade jurídica, em detrimento da vida e dos direitos de outros (mulheres e crianças) que, pelo facto de já serem natos possuem uma personalidade jurídica legalmente observada.

Em suma, como coletivo, andamos a legitimar a discussão em praça pública do direito pleno de alguém sobre o seu próprio corpo.

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