Calmeirão bigodudo, no fim dos cinquenta princípio dos sessenta, com penas de sobejo. Cabelo grisalho, sal e pimenta como dizem os anglos, ainda bem vestido: casacos de camurça e sapatos de berloques, calças já sem vincos por debaixo de camisas de marca, já sem botões de punho.
Lembro-me dele no café há dois ou três anos, tardes de sábado de “Expresso” nas mãos, bica e "whisky", John Player Specials a fumegar por debaixo dos óculos escuros bem desenhados, a micar as miúdas demasiado novas com ar de matador, sempre à caça, sempre sozinho, sempre seguro, independente, auto-suficiente qual macho ibérico à solta no pasto.
Era claramente bicho solto, sem rede social (como dizem os antropólogos de quem não tem família nem amigos próximos), sem poupança, um hedonista a viver no limite do ordenado: bem vivido, bem vestido, bem comido, bem bebido e bem fodido, provavelmente bem falante, viajado e endividado; um doutor diriam na aldeia dos meus avós. Não sei o que lhe aconteceu, afinal só o conheço de vista (como se diz em Lisboa), mas aposto a mão direita que se resume a um simples e terrível vocábulo: desemprego. Porque a empresa foi com o galheiro ou porque fizeram um moderno “downsizing”, ou simplesmente porque correram com toda a gente com cabelos brancos, sem esforço vejo-o a meter os papéis para o subsídio. E o escorrer dos meses fatais a desiludirem-lhe os envios dos curricula, o corte nas saídas, depois a tv-cabo, o carro parado e depois vendido por tuta e meia, finalmente os jornais e o café, fatalmente o tabaco, os valores no prego, o fim dos vícios.
Miséria colectiva
Agora vejo-o discreto à espera que feche o super-mercado, à espera que os moços ponham os caixotes à porta e ele possa apanhar uma frutazita tocada, uma hortaliça amachucada, umas bolachas ou iogurtes já fora do prazo. Nem sequer é o único a comer do lixo aqui à minha porta, também há um par de velhotes e um casal miúdo (ela muito grávida), mas ele é sempre o mais encolhido, sempre o único que olha à volta, com vergonha que os vizinhos o vejam, com vergonha duma miséria que não é só dele, duma miséria colectiva que nos envergonha o jantar quente a todos.
Mais tarde ainda, vejo-o a passear pela rua vazia, com ar de quem desmói um lauto jantar, olhos nas nossas janelas antes de se baixar e recolher as nossas beatas mal fumadas; já aprendeu que na paragem de autocarro e à porta do supermercado há sempre grossa colheita, recolhe-as no casaco de camurça cada vez mais puído, cada vez a enganar com mais dificuldade os desconhecidos.
A classe média foi uma ideia linda, dava esperança à ralé criava um tecto falso entre o capital e a fome... mas a um ponto qualquer foi para o caixote do lixo da história das ideias. Nós fomos aceitando trabalhar cada vez mais por cada vez menos e de qualquer maneira o dinheiro prefere concentrar-se e concentrar-se e concentrar-se no topo da pirâmide, como se o meu calmeirão pudesse um dia viver do ar ou desaparecer sem um pio nas dobras das tabelas de excel dos economistas, como se nós aceitássemos indefinidamente uma distribuição cada vez mais desequilibrada do que produzimos colectivamente... como se tal fosse possível.