O açúcar mistura-se rapidamente no negro do café, na televisão os gajos discutem coisas no plenário mas ninguém lhes liga puto, a garota aponta para os bolos da montra e diz que “a menina gosta!”, eu minto-lhe com um amanhã o pai compra.
Temos de ir à padaria, temos de ir ao talho comprar bifes de peru para o tio que bateu os 500s nos triglicerídeos, temos de gerir os avós, temos de arranjar trabalho que estou farto de estar em casa e cravar os velhos. Mais um olhar para a televisão, a Heloísa berra com o ministro do Ambiente “Chega-lhe Heloísa!”.
A escola está quase quase quase a começar, não há camas nos IPOs, a iluminada da Justiça arranjou uns expiatórios sabotadores mas as redacções parece que não estão a morder o anzol, um “apparatchik” do Instituto de Ciências Sociais censura o descrever da realidade que censurar a realidade é mais difícil, a malta entretém-se com as medalhinhas do Cherne e do Sócas, os comentadores comentam os comentadores... com a mulher a mais de sete mil quilómetros a quem é que eu me queixo?!
Há qualquer coisa no ar que me lembra o “Holy Moses” da tia Aretha, sim, sim estamos todos envenenados da cabeça aos sapatos. Os gajos riem-se sem se aperceberem da tragédia que semeiam; este rio de angústia e miséria que eles afluem dia após dia qualquer dia desemboca, com um bocadinho de azar corre horrivelmente mal... depois hão de dizer que somos feios porcos e maus, pois, é sempre a corrente do rio que é violenta, nunca as margens.
Voltamos a casa com os sacos, “a menina ajuda!” assegura-me a criatura; eu dispensava mas sempre é melhor do que estares a riscar as paredes com lápis de cera. Os gatos exigem ração e torneiras abertas, podiam dar lições à CGTP estes dois! Descalço-me, deslizo pelo soalho em espinha, a miúda canta meio em português meio em francês, a letra do “Malhão” em cima da melodia do “Frère Jacques”, os gatos esticam-se ao sol do fim da tarde, verifico se ainda há sopa de uma das avós, já não sei de quem é este “tupperware”, é desnecessário ser-se um pai moderno no meio de avós mediterrânicas.
Ponho música, espio o pátio do infantário em frente onde os putos entoam um “Mata! Mata! Mata!” ao redor de dois enrolados, a auxiliar corre para os pequenos selvagens. Menos stress, Freud explica, havemos de vos transformar em membros produtivos da nossa civilizada sociedade; verter este “Senhor das Moscas” em corrente conselho de administração, que isso já é socialmente aceitável, que esse específico tipo de selvajaria já é querido e desejável.
Espreito a rua, a história continua a escorrer lentamente, envelhecemos um cabelo branco de cada vez à espera duma grande e estrondosa mudança, enterrando um avô de vez em quando, somando mais um triglicerídeo aqui mais um triglicerídeo ali, tudo parece na mesma mas é mentira dos nossos olhos viciados. Tudo está absolutamente diferente de há 10 minutos, a imaginação da minha filha é uma coisa nova no mundo, algo de completamente original, muito mais que a soma dos defeitos dos seus progenitores, uma coisa específica que vai mudar muito mais o futuro do que o que já muda o presente.
Hoje dou-lhe batatas fritas, que se lixem os triglicerídeos, a cachopa merece.