Custa-me perceber o porquê de quem me está próximo achar-se no direito de, porque apanhou um avião para terras de Sua Majestade, se auto-proclamar o próximo Sting uma vez chegado ao aeroporto de Stansted onde, às quatro da manhã e sem sítio onde ficar (não só porque não procurou mas porque veio sem dinheiro), nem sequer as raposas querem saber dele, entretidas que estão com os sacos de lixo desfeitos entre latidos pelas ruas abaixo.
Custa-me perceber a falta de consciência e a presunção de achar que a emigração tem tudo para dar certo. Custa-me ver como hoje em dia ainda é possível chegar aos quarenta anos e nunca ter escrito um currículo, quanto mais um currículo em Inglês. Custa-me, acima de tudo, a arrogância de quem se sabe pouco capaz mas que nem por isso pede ajuda. Ainda para mais se mesma ajuda está ali, à distância desta mão, "free of charge", para quem dela quiser fazer o melhor proveito possível, em nome de um futuro melhor. Para ti, para os teus, para todos nós.
Para falar com franqueza, creio ser o começo desta história o facto de não ter cedido um quarto a quem me está próximo, porque em Portugal está mau (pois está, ou não estaria este teu amigo aqui do lado lá da linha e do mar), porque eu vou para Inglaterra para ser uma estrela "pope" e aqui em Portugal as estrelas "popem" de fome, e não há via láctea ou chocapics que nos valham, porque não tenho onde ficar mas também não vou procurar, até porque os amigos são para as ocasiões e se tu já aí estás há tanto tempo por certo não te importarás com este teu amigo debaixo do mesmo tecto, sentado à mesma mesa, deitado na mesma cama, debaixo da mesma mulher até que, quem sabe, um dia cheguem melhores dias. Vá-se lá saber porquê, desliguei o telefone.
O "facebuque"
Não, não tenho quarto onde possas ficar, mas tenho um número de telefone com o qual te posso ajudar. Se é de confiança? Sim, é de confiança, é do senhorio da Joana, o qual tem um quarto para alugar. Se o dito senhorio tem email? Não, lamento mas não tem: vais ter mesmo de ligar e gastar dinheiro e, pior, falar em Inglês. Procura por quarto nos grupos de Portugueses espalhados pelo "facebuque". Faz alguma coisa, porque na minha casa não podes ficar. Já ficaste, lembras-te? Foi mais ou menos há sete anos. Na altura ainda te ofereceram emprego numa universidade, para além de emprego como senhor engenheiro, mas como em nenhum dos casos se tratava de uma editora com um contracto milionário e uma legião de gajas aos teus pés num sem número de programas de televisão, disseste que não.
A minha avó sempre se referiu à vida como uma sucessão de comboios: se não apanhas o teu, não encontrarás outro no seu lugar. E a mim faz-me espécie ver quem me está próximo embevecido com os comboios que por si passam, qual criança de quatro anos à espera de ser maquinista, sem mais nada fazer para além de acenar. Na minha terra chamam-nos tontos.
Deixa-me, portanto, contar-te um segredo: daqui por cem anos ninguém se lembrará dos maquinistas ou dos tontos. Na morte, meu amigo, somos todos comunistas.? E talvez seja isso o mais surpreendente, o facto de num repente, perder vinte anos de vida em comum para, às quatro da manhã de um dia de semana no aeroporto de Stansted, outra pessoa não encontrar para além de um perfeito desconhecido onde tudo ainda está por aprender. Aproximo-me do meu amigo: não tenho um contracto milionário com uma editora mas se quiseres posso enviar o teu currículo para escolas. Resposta: obrigado, mas não obrigado, prefiro um trabalho relacionado com música, e a ensinar só se for adultos.
Para bom entendedor, meia palavra basta.