Privatizar o desemprego

O governo que criou o maior número de desempregados de que há registos no país, fazendo com que os salários baixassem e a “flexibilidade” aumentasse, oferece agora mais de um milhão de pessoas desesperadas às empresas dos salários baixos e “flexibilidade” alta

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Alkis Konstantinidis/Reuters

Há que ser empreendedor. Dar o litro. Bater punho. Acordar de manhã com um sorriso em riste e saber que se é um vencedor. Vestir a camisola das empresas. Ter um “knowledge hub”, fazer “coaching” ao nosso cérebro. Procurar oportunidades onde os outros só vêem obstáculos. Foi isso que mais uma vez o ministro da ex-mota, Mota Soares, fez.

Os últimos anos foram um pouco “low”. As coisas andam por baixo porque a malta não se mexe e é acomodada. São 17% de “nem-nem” entre os jovens até aos 29 anos — malta que não trabalha nem estuda. Os mais velhos, já se sabe, não são competitivos, não têm “edge”, e por isso 78% dos desempregados com mais de 45 anos não consegue encontrar emprego. E depois há a malta que saiu da zona de conforto, parece que foram mais de 400 mil “entrepreneurs”. Mas é preciso olhar para isto de forma competitiva, ter ideias “out of the box”. Então a malta não pode decorar os velhinhos com uma flor na cabeça e vender aos turistas que andam para aí de tuk tuk? Ou pedir à polícia para desalojar a malta dos bairros sociais e meter lá uns hostels? E meter os sem-abrigo a puxar riquexós? Isto é empreendedorismo social. E já anunciaram 122 milhões que vêm do Comissário Moedas.

Mas é preciso mais. Ir mais longe. Junto com Vítor Gaspar, Mota Soares começou a usar o Fundo da Segurança Social para pagar dívida pública, que serve para garantir as prestações sociais e as pensões de quem trabalha. É empreendedor ou no mínimo inovador já que, exactamente ao contrário de salvaguardar esse dinheiro como era objectivo do fundo, pô-lo em risco. Mas é sempre possível mais. E por isso esta semana o ministério da Segurança Social anunciou a privatização dos desempregados.

Depois de alguns anos em que não só este ministro como os anteriores foram desmantelando o IEFP, dispensando os funcionários, tirando-lhes competências, meios e financiamento (que foi passando para empresas privadas), finalmente cumpriu-se a profecia auto concretizável: se tirares a um organismo as coisas que necessita para funcionar, ele pára de funcionar. Mas ainda antes de parar, os empreendedores das empresas de trabalho temporário (ETT) terão olhado para os mais de um milhão de desempregados e pensado: “Eureka! Vamos ser empreendedores sociais!” (porque empreendedores já eram). Passos Coelho bem que já tinha dito que o desemprego era uma oportunidade.

O modelo de negócio da Randstad, Adecco, Manpower, Kelly Services, entre outras, consiste em receber uma fatia em média de 40 a 60% do salário dos trabalhadores. O que fazem para receber esse dinheiro não é muito perceptível, mas em média passados quatro meses acaba esse trabalho. E quem trabalhou recebe 60 a 40% do salário que o patrão final pagou. É um modelo de negócio super empreendedor e inova a maneira como os salários não vão para os trabalhadores. Disse trabalhadores? Queria dizer colaboradores. Claro que há quem diga que o trabalho temporário é um Triângulo das Bermudas em que o conluio entre patrão final e ETT faz desaparecer os salários e os direitos laborais de quem de facto faz as coisas funcionarem, mas esses são os mesmos que acham estranho as pessoas desempregadas terem que trabalhar para manter o subsídio de desemprego.

A privatização do desemprego é de facto em belo exemplo de empreendedorismo: o governo que criou o maior número de desempregados de que há registos no país, fazendo com que os salários baixassem e a “flexibilidade” aumentasse, oferece agora mais de um milhão de pessoas desesperadas às empresas dos salários baixos e “flexibilidade” alta. Se este não fosse empreendedorismo social, poderíamos dizer que o governo colabora para as empresas privadas. Disse colabora? Queria dizer outra coisa.

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