Em viagem de autocarro, sigo em direção a sul. Talvez a expressão dos números de adesão à greve dos médicos seja quase invisível, talvez os noticiários não se entusiasmem, talvez fosse mais rentável em termos de audiências uma paralisação total de consultas e cirurgias, urgências entupidas de doentes, com mortos e feridos esventrados por falta de assistência médica, o "pivot" a anunciar previamente em tom sério que o teor das imagens pode chocar os espectadores mais suscetíveis. Talvez. Mas a vontade de mudar é impossível de encaixar em estatísticas. É invisível. Não é rentável.
Mas os serviços mínimos são assegurados, com a saúde os médicos não brincam. Muitos doentes são avisados pelo seu médico para não comparecerem na consulta, uma ausência no trabalho pode ser sinónimo de desemprego, um lar de mesa vazia, invisível, não contabilizável estatisticamente.
Mas os doentes que morrem antes da hora marcada também não se contabilizam, porque ninguém pode afirmar que essa não era a hora. São invisíveis. Adoecem, agonizam lentamente afogados em doenças crónicas amenizadas por mezinhas de aldeia, porque os quilómetros são poucos para quem tem automóvel, mas são muitos para quem tem de pagar um táxi de madrugada para assegurar uma vaga no Centro de Saúde, porque a extensão próxima de casa encerrou. Não era rentável.
Como não é rentável aumentar tempos de consulta, e os doentes saem carregados de exames e medicamentos, com a verdadeira doença muitas vezes por desvendar. Também isto permanece invisível.
Como não são rentáveis muitos medicamentos crónicos, e por isso trocados por outros aparentemente bio equivalentes, aparentemente.
A repercussão dessa substituição nos doentes não se contabiliza, é invisível.
Como não é rentável uma equipa ter mais de x elementos, os números calculados estatisticamente com base na afluência à urgência ou pelas taxas de ocupação das enfermarias, os imprevistos por prever porque não são rentáveis. E por isso um enfermeiro que sempre trabalhou num serviço pode ser destacado para outro para cobrir um imprevisto.
E por isso se reduzem ao mínimo os números de médicos destacados para a urgência, e se o imprevisto surgir, essas horas de banco são insuportáveis para clínicos exaustos e sujeitos a errar, e para doentes desesperados com a espera, gerando conflitos entre ambos, onde os culpados são invisíveis, não se contabilizam.
A crise não teve impacto significativo na saúde. Pois não. Porque não se contabilizam os meninos que desmaiam a meio da manhã e recorrem ao hospital, porque a última refeição foi uma sopa ao jantar. Não se contabilizam os adolescentes que tentam o suicídio, cujo número cresce, espelho da disfunção familiar inevitável quando ambos os pais estão desempregados. Nem os meninos que vão à consulta por insucesso escolar, e numa simples história clínica se descobre que, por coincidência, os problemas surgiram quando o pai emigrou. São meninos invisíveis. Por isso sigo em viagem, em voo de autocarro como ave migratória, na esperança de mudar alguma coisa. Uma utopia, eu sei. E somos invisíveis, eu e muitos colegas que ainda acreditam no SNS, sinónimo de saúde para todos.
Mesmo que o impacto da crise na saúde seja invisível, mesmo não parecendo haver motivos laborais para uma greve dos médicos, o bode expiatório da encapotada motivação política, o bicho papão escondido no armário. Que eu saiba a liberdade de expressão não é ainda crime nem vergonha, e o termo política deriva do grego, referindo-se aos assuntos da pólis (cidade), aos direitos dos cidadãos em sociedade. E se já Aristóteles definia o homem como "animal político", não entendo a conotação negativa dada ao termo. É invisível, serei ingénua, talvez. E quando o autocarro chegar, irei com os colegas de bata branca mostrar que o João Semana, doutor das pessoas talvez exista, uma espécie de super-herói que invisivelmente se insurge contra a morte invisível do SNS, cada vez mais um MacGyver dos tempos modernos, ao melhor estilo do "desenrasca" lusitano. E esse é que é o motivo.