Ainda não tinha chegado às livrarias e já ansiava pelo livro do historiador Victor Pereira: “A ditadura de Salazar e a emigração — o Estado português e os seus emigrantes em França (1957-1974)”. É uma obra muito bem documentada. Desmonta, com detalhe, como “a emigração foi ‘construída’ como um problema e de que modo acentuou as lutas de poder no seio do Estado [Novo]”.
Em 1961, mal começou a guerra colonial, Portugal criminalizou a emigração clandestina. Quem partisse sem autorização podia apanhar até dois anos de prisão. Só no virar da década, depois de António de Oliveira Salazar cair da cadeira e Marcello Caetano assumir a presidência do Conselho do Estado Novo, passou a contra-ordenação. Com Abril veio a liberdade de partir. Agora, o Governo incita os cidadãos a agarrarem essa “oportunidade” — facilitada pela livre circulação dentro do Espaço Schengen.
Esquece a ideia tonta — e em voga — de que o país está hoje como há 40 anos.
Naquele tempo, o poder da Administração podia ir além das leis e dos acordos internacionais — como o de migração e colocação de trabalhadores que Portugal assinou com França em 1963 e não cumpriu. Querendo, os presidentes das câmaras impediam as saídas legais dos munícipes. Se lhes interessasse ou interessasse a alguém influente, até podiam pedir à polícia para prender um trabalhador que se apresentasse numa inspecção organizada pela Junta da Emigração.
As elites combatiam, de forma activa, a emigração. Argumentavam que faltaria gente para trabalhar. Não faltava, mas ia-se o excedente. Os proprietários agrícolas e os industriais, escreve Victor Pereira, encontravam cada vez menos o seu “ideal”: “um indivíduo mal remunerado, dócil, não reivindicativo, disponível quando os trabalhos o exigem e dispensável assim que os trabalhos terminam.”
Quem emigrava sem licença era denegrido por tais senhores, que os encaravam como fugitivos, traidores. Quem ficava era desvalorizado, não fosse pôr-se a fazer exigências. O historiador cita, por exemplo, Gonçalo Correia de Oliveira, ministro da economia de 1965 a 1969, que diz terem ficado só os trabalhadores “diminuídos fisicamente e os que nunca prestaram para coisa alguma”.
Tardará a repetir-se este discurso?
Pouco lhes interessavam as aspirações de cada um. Argumentavam que a emigração quebrava a unidade do Estado; que privava o Império de soldados e colonos; que os emigrantes, coitados, teriam saudades da vida simples do campo; que sofreriam influenciais terríveis dos franceses, esses “descristianizados” e “comunistas”, e acabariam por corromper toda a sociedade portuguesa.
Entre 1957 e 1974 mais de um milhão e meio de portugueses saíram de Portugal, a maior parte para França. O que raio se passava com a toda poderosa polícia política, a quem cabia vigiar as fronteiras?
Não era para as elites rurais e industriais perceberem, só que não estancar as saídas e torná-las tortuosas estava longe de ser descuido do Estado Novo, esclarece Victor Pereira no livro. Dava jeito que os homens partissem sozinhos e endividados. Só assim mandariam todo o dinheiro possível para cá. Impedir as pessoas de sair com os papéis em ordem era também um meio de as fragilizar: “Clandestinos, os emigrantes mostravam-se mais dóceis e mais prudentes”.
Hoje, por todo o lado, ouvimos alusões àquele tempo. Em cada ano, mais de 100 mil pessoas saem do país. Saíam mais de 100 mil por ano no fim da década de 1960 e no princípio da década de 1970. Estamos no mesmo sítio, repete-se. Não estamos. Naquela altura, como conclui Victor Pereira, começava a europeização de Portugal. Agora, vivemos a “chinesização” da Europa.