Crise de desgoverno

Com a escandalosa antecedência de apenas dois dias para o fim do mês, a minha antiga entidade patronal anunciou que não pagaria salários. Aos que vivem ou sentem o mesmo, não se silenciem

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Beawiharta/Reuters

Não me recordo do dia em que a crise internacional inundou os noticiários. Não me lembro se ouvi falar primeiro do colapso da bolha imobiliária, do aumento dos juros, de falências em dominó ou dos planos de resgate e austeridade. Mas tenho gravado o dia em que nos chegou: 29 de Maio de 2009. Com a escandalosa antecedência de apenas dois dias para o fim do mês, a minha antiga entidade patronal anunciou que não pagaria salários, sem certezas sobre quando voltaria a fazê-lo. A pergunta imediata de todos: despedem-se funcionários? Vão os dos recibos verdes primeiro? Nem uns, nem outros. Os que estavam a falsos recibos verdes faziam falta pelo trabalho a baixo custo e quem tinha contrato não podia ser demitido porque não havia dinheiro para indemnizações. Ficámos presos. E não ficámos só lixados, fomos lixados — o que é completamente diferente.

Nenhuma crise surge do nada e ali viu-se o mesmo que se alastra a tantas outras empresas e instituições do país. O problema de Portugal não é a falta de dinheiro, nunca foi. O problema é a má gestão do dinheiro. É a incompetência, a megalomania, a irresponsabilidade, a impunidade de muitos que o gerem, e o silêncio estorvante e vergonhoso de tantos outros que não denunciam.

Por três anos vi-me enrolada num esquema cavernoso. Da gestão financeira de organizações pouco entendia na altura, mas de tribunais, afrontas e aflições fiquei a perceber muito mais. Vi o contrato de aquisição da minha casa anulado, vi as poupanças esgotarem-se para cobrir despesas quando o salário não era pago, vi-me a desaparecer dos registos da Segurança Social durante vários meses porque vivemos num país onde uma empresa pode subitamente deixar de descontar uma dezena de funcionários sem qualquer justificação. Como se não fossemos mais do que números ferrugentos. Mas vi também gastos absurdos em hotéis de cinco estrelas, quadros directivos a receberem salários injustificáveis, material caríssimo e desperdiçado, pagamentos selectivos e alternados, submissões políticas e demasiada falta de vergonha na cara.

No comunicado de encerramento, a direcção afirmava que não tínhamos conseguido sobreviver à crise. Deixava por contar a história real: a de que há pessoas que não sabem sequer gerir a própria despensa, quanto mais uma instituição. Claro que se estamos integrados numa economia global, o que afecta uma parte repercute-se noutra, embora em escalas diferentes. Porém, que não existam dúvidas nem desculpas quanto a isto: o endividamento é a expressão máxima da má gestão, seja em casa, seja num Estado. Quem gasta o que não tem, ou gasta mal o pouco que tem, é ignorante. E quem gasta mal aquilo que pertence a um grupo não é só ignorante, é criminoso, seja esse grupo um conjunto de trabalhadores ou um povo. A crise é real, mas não é inocente. É multidimensional, mas não é isenta.

Aos que vivem ou sentem o mesmo, não se silenciem. Porque não há pior silêncio do que aquele que engolimos por submissão a uma sociedade feita de telhados de vidro.

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