Quando o dinheiro não chega para continuar na faculdade
É mais um efeito da crise: há estudantes que se vêem obrigados a desistir da universidade, por falta de dinheiro para fazer face a todas as despesas, e outros que contraem créditos com garantia mútua para evitarem o abandono.
Abandonar a faculdade por falta de dinheiro acaba por ser a escolha de muitos jovens portugueses — ainda que não haja números recentes oficiais sobre esta tendência. Os créditos da Sociedade Portuguesa de Garantia Mútua (SPGM), em que o Estado é o fiador, são uma alternativa ao financiamento, há já alguns anos, e o governo está a preparar o regulamento de um novo programa, com recurso a fundos europeus, que visa permitir o regresso de estudantes às aulas, para concluírem a formação. O P3 ouviu três jovens que se viram confrontados com a dificuldade de continuar a estudar em tempos de crise.
E.V., 28 anos: “Sinto que o mundo continuou sem mim”
Para E.V., estudar nunca foi um sacrifício — “as férias sim, eram um martírio”. Licenciada em antropologia, esta jovem de 28 anos teve de desistir da faculdade há dois anos: o mestrado que frequentava não contemplava, ainda, a atribuição de bolsas de acção social (de que tinha beneficiado durante a licenciatura) e a família deixou de a poder ajudar. Prefere não ser identificada porque nem todos sabem que não concluiu o segundo ano do mestrado.
O sonho de E.V. é poder, um dia, ingressar numa universidade de topo dos Estados Unidos. Para isso, considera fundamental desenvolver “uma boa tese”. Há mais de dois anos que a tem pensada — sobre a síndrome de Asperger, no âmbito da antropologia médica. “Já tinha tudo delineado, tinha até orientador antes de começar — a quem fui pedir com as mãos a suar, quase como se vai pedir alguém em namoro”, conta ao P3. “Espero que, quando conseguir voltar, esse professor ainda esteja em Coimbra.”
Mas esta é a maior incógnita. E.V. não tem ideia de quando conseguirá regressar à universidade daquela cidade. Há largos meses que procura trabalho, sempre sem sucesso: “Não me aceitam em lado nenhum porque tenho uma licenciatura e não consigo na minha área porque só tenho a licenciatura”.
O programa Retomar — iniciativa do Governo, com financiamento da União Europeia, para fazer com que estudantes que deixaram o ensino superior possam regressar — pode ser uma solução para a jovem, cujo objectivo é voltar a Coimbra já no próximo ano lectivo. E.V. sente-se “um bocado estupidificada” por estar há mais de dois anos sem ler nada académico — estudar é o que mais gosta de fazer. “Sinto que o mundo continuou sem mim.”
Duarte Gaio, 25 anos: “O dinheiro nunca tinha sido um problema”
Foi preciso passar três anos a estudar psicologia, em Évora, para que Duarte Gaio percebesse finalmente que o que mais queria era Cinema. Quando finalmente entrou em Cinema, Vídeo e Comunicação Multimédia, na Universidade Lusófona, em Lisboa, teve de deixar logo no primeiro ano. O facto de continuar a estudar impedia os pais de se reformarem, por questões financeiras. “Não achei isso justo.”
“O dinheiro nunca tinha sido um problema lá em casa, até ao ano passado. É estranho porque nunca tive de pensar nisto”, pensa. “Foi uma conjugação de factores, sendo a crise um deles, claro. Os preços subiram e os meus pais começaram a ter de trabalhar mais por menos.” Nunca se candidatou a uma bolsa de estudo porque nunca tinha precisado, e nunca ponderou fazer um crédito porque tem “demasiado medo de ficar com dívidas”.
A decisão, “muito difícil”, foi tomada em família, sempre com o regresso à universidade como prioridade. Duarte é um dos 500 mil universitários que, segundo uma estimativa recente da Federação Académica do Porto, se viram obrigados a abandonar o ensino superior, nos últimos dez anos. Ainda com a ajuda dos pais, Duarte emigrou para a Inglaterra há cerca de três meses, para procurar emprego. Em Manchester — onde vive e a partir de onde conversou com o P3, via Skype —, só pensa em voltar às aulas, mas já não em Portugal. O objectivo, assim que conseguir trabalho, é tentar ingressar na Manchester College para continuar a estudar cinema.
Duarte, que gostava de trabalhar como argumentista, não quer voltar a Portugal tão cedo. Sente-se revoltado por ter tido de abandonar a faculdade, mas procura não pensar muito nisso. “É um bocadinho triste o ensino ser tão caro. A educação deveria ser acessível a toda a gente.”
João, 23 anos: concluir curso com 15 mil euros em dívida
João estava no primeiro ano da licenciatura em direito, na Universidade do Minho (UM), quando o divórcio dos pais o obrigou a procurar uma alternativa financeira. O crédito com garantia mútua acabou por ser a opção escolhida para terminar o curso. O valor pedido “foi dividido pelos vários anos da formação académica e pelos doze meses do ano”, explica ao P3. Há depois um período de carência, em que apenas são pagos juros. A partir daí é preciso pagar o empréstimo.
“Acabei por prolongar para a fase do mestrado e, no fim de cada um dos anos, tenho que fazer prova de aproveitamento”, refere. No total, João pediu 15 mil euros, que deve começar a pagar em 2015; a tese de mestrado em direito administrativo da saúde estará pronta, “se tudo correr bem”, no fim do presente ano lectivo. Desde que a linha de crédito da SPGM foi criada, em 2007/2008, quase 20 mil universitários pediram empréstimos, num valor total que ronda os 224 milhões de euros. De acordo com dados da SPGM, a taxa de incumprimento no pagamento está nos quatro por cento (o que equivale a quase nove milhões de euros em falta).
Esta é, aliás, uma das maiores preocupações de João, a quem o pagamento “assusta bastante” — e já assustava durante o curso, uma vez que se reflectia “numa pressão ainda maior, fruto da obrigação assumida, de concluir cada um dos anos”. “Sei que vou ter de trabalhar bastante para conseguir cumprir (...). Tenho que pensar pela positiva, que as oportunidades hão-de surgir”, desabafa o jovem de 23 anos.
João opta por não divulgar o apelido porque só a família mais chegada sabe do empréstimo, mas enquanto foi membro da Associação Académica da UM teve conhecimento de muitos casos de estudantes com dificuldades, “que todos os dias fazem sacrifícios para continuar” e que, muitas vezes, acabam por desistir. Considera os créditos positivos — ainda que o sistema de pagamento pudesse ser melhorado, à semelhança do que acontece no estrangeiro, onde os estudantes só começam a pagar quando começam a trabalhar —, mas teme que possam ser “algo perniciosos”. “Sobretudo no que toca ao sistema de bolsas de estudo de acção social”, aponta. Isto porque o facto de os estudantes terem soluções alternativas como esta pode “atrasar mudanças na atribuição dessas mesmas bolsas”.
Notícia corrigida às 14h45: Duarte Gaio esteve três anos a estudar Psicologia, e não cinco, como foi mencionado na versão original. No depoimento de Duarte foram ainda suprimidas algumas palavras que sugeriam, erroneamente, uma situação actual de problemas financeiros.