As mitologias do mérito

Há muita gente, hoje, que acredita nesta mitologia do mérito. Mas só há duas possibilidades para se acreditar em tal patranha: ignorância (ou incapacidade cognitiva) ou interesse estratégico (e cinismo)

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Daniel Munoz/Reuters

Durante a antiguidade clássica os gregos e os romanos divertiam-se a inventar mitologias divinas, em que os deuses se envolviam em elaborados enredos de traição, vingança e lutas pelo poder. Dessas histórias, os clássicos tiravam lições para a sua vida quotidiana.

Muito séculos depois, a descendência desses clássicos (a nossa civilização ocidental) já não vive de histórias mitológicas divinas (apenas mantém uma, a abraâmica) mas criou (principalmente depois da revolução industrial e da consolidação do capitalismo) uma nova: a meritocracia.

Segundo a mitologia meritocrática, as sociedades ocidentais democráticas e capitalistas são o paraíso do mérito, ou seja, o local onde quem quiser chegar chega onde quiser. Assim sendo, a distribuição das funções da sociedade pelos diversos indivíduos obedece, unicamente, a esse princípio do mérito: em última análise, cada um faz o que tem de fazer, o que o seu mérito permite que faça. E o grande corolário é este: a distribuição da riqueza e do poder, em qualquer momento, na sociedade ocidental, é justa pois que espelha o mérito relativo de cada indivíduo. E por isso não devemos mexer nessa distribuição (nomeadamente não deve o Estado alterar esse status quo).

Há muita gente, hoje, que acredita nesta mitologia do mérito. Mas só há duas possibilidades para se acreditar em tal patranha: ignorância (ou incapacidade cognitiva) ou interesse estratégico (e cinismo).

A ignorância resulta do facto de não perceberem que o resultado distributivo das funções, poder e riqueza na sociedade só em muito pequena parte depende do mérito dos indivíduos (embora dependa mais do mérito nas sociedades democráticas ocidentais do que noutras). E isto não é uma questão de opinião, apenas factos da realidade. É que o mérito é um conceito filosófico que diz respeito àquilo que cada um contribui, por si só, para o seu destino. Mas para se chegar a essa contribuição, teríamos que expurgar todos os outros factores que determinam o nosso futuro. Acontece que esses outros factores são inúmeros e têm um papel determinante. A saber: as condições de partida (para se avaliar o mérito teríamos todos de partir do mesmo sítio, sem heranças genéticas, monetárias, afectivas, de conhecimento e de conexões sociais); a sorte (teríamos de descontar os eventos fortuitos que nos dão vantagem ou desvantagem); as economias de escala (grande parte dos fenómenos está sujeito a economias de escala, isto é, a reforços positivos para quem ganha uma ligeira vantagem inicial. Essas economias permitem cavar um fosso, sem esforço ou mérito, entre o líder e os outros, apenas graças a uma pequena vantagem inicial, que até pode ter sido resultado da sorte).

A verdade é que a sorte não sorri mais aos audaciosos (ou especialmente a esses). A sorte sorri mais a quem mais tem (riqueza, inteligência, redes de contactos).

Quem sabe tudo isto e continua a ser paladino da mitologia do mérito, fá-lo apenas por conveniência, para poder manter a sua posição dominante, enquanto deixa os dominados convencidos de que não lhes resta outra alternativa senão aceitarem o domínio, pois que o mérito deles a mais não lhes permite.

Quando vejo pessoas bem-nascidas e com boa posição social a dizerem que tudo vai bem (“é o mérito, estúpido” clamam eles) sinto aquela vontade primária de os obrigar a partir das posições desaforáveis que os outros que eles classificam sem mérito tiveram que suportar. Pegar num administrador de um monopólio e pô-lo a nascer filho de uma prostituta e de um drogado, a ter sido abusado em criança, e depois ver que tipo de gestor ele iria dar (e todas as excepções só confirmam a regra).

Enfim, não perceber que a sorte na nascença é determinante para quase tudo na nossa vida (em termos probabilísticos e comprovado cientificamente) é ser ignorante ou muito má pessoa.

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