“Se me dissessem, em miúdo, que ia conhecer o George Romero… é a mesma coisa que hoje dizerem a uma miúda de 12 anos que vai dormir com o Justin Bieber”. Filipe Melo tropeça nos seus ídolos de infância à mesma velocidade que novos projectos se atravessam no seu caminho. É no jazz, mais concretamente ao piano, que o estamos acostumados a ver (e ouvir). Mas a música não lhe chega e o cinema é outra paixão a que não soube dizer que não. É, ainda, autor da banda desenhada “As aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy”, que tem o terceiro livro nas prateleiras desde Novembro.
“Por ter tantas paixões, já nem sei o que sou…”. Filipe Melo assegura que “o tempo não estica”, embora só o tenha percebido nos últimos tempos. “Isto já não é o que era. Agora uma directa dói o triplo”. Com tanto trabalho, e em áreas tão diversas, o músico garante que, por vezes, lhe dá “vontade de hibernar”. Mas é precisamente nas horas de descanso – sobretudo quando já está “num estado meio torpe de entrada no sono ” - que as ideias lhe aparecem e ganham forma. Depois? As (boas) ideias não lhe saem do pensamento e tem logo de voltar ao trabalho. “É neste caos que me divirto”.
Duas mãos na música
A paixão pelo jazz deve-se, em grande parte, ao gosto pelo improviso. “Não gostava da pressão de falhar o texto [na música clássica]. Gosto de me sentir livre para improvisar”. Se o improviso pode dificultar a performance? Filipe compara a linguagem do jazz com a interacção humana. “É igual a um diálogo entre duas pessoas, ou seja, tem de haver uma linguagem comum. No caso do jazz falamos numa linguagem não-verbal. Quando estamos a falar com pessoas com quem crias algum tipo de empatia, as coisas fluem muito naturalmente e tornam-se muito fáceis. Se, por algum motivo, não tens essa empatia com a pessoa com quem estás a tocar, torna-se muito difícil”.
Já tocou com nomes incontornáveis da música portuguesa, como Carlos do Carmo, Camané ou JP Simões. Ultimamente, esteve a gravar o álbum “True”,de Legendary Tiger Man, que tem lançamento previsto para Fevereiro de 2014. Integra, ainda, o espectáculo “Deixem o pimba em paz”, uma criação do humorista Bruno Nogueira que conta a vocalista dos Clã. “A Manuela Azevedo é uma das pessoas mais talentosas que já conheci. Já o Bruno é uma pessoa muito especial, com muito boas ideias. A banda é composta por músicos muito inspirados”.
Como a inquietação do músico não lhe permite descansar, continua a tocar no quarteto co-liderado com o guitarrista Bruno Santos, com quem já toca há 12 anos. “Ainda não me fartei dele e parece que ele ainda não se fartou de mim”, conta Filipe enquanto afirma, com algum orgulho, que todos os anos têm conseguido trazer “músicos internacionais” que admiram para tocar com eles.
O sucessor do álbum do Trio Filipe Melo, “Debut”, só deverá sair no próximo ano. “Tenho de acabar o mestrado e preciso gravar um álbum para isso, mas não gosto nada de me ouvir…”.
Um pé no cinema
Desde cedo que o cinema, nomeadamente o género fantástico, faz parte da sua vida. Quando era mais novo, Filipe Melo saía das aulas de piano e refugiava-se nos filmes de zombies do Romero. O gosto pelos efeitos especiais não se perdeu e foi aprendendo mais sobre a sétima arte, mas sempre como autodidata.
Em 2003, funda a produtora audiovisual “O Pato Profissional” e, no mesmo ano, estreia-se no panorama cinematográfico com a escrita e produção da curta-metragem “I’ll see you in my dreams”. “Foi um tributo aos velhos filmes de George Romero, Lucio Fuci ou Lamberto Bava”, conta Filipe. “Agora todos vêm filmes de zombies, principalmente desde que saiu a série "Walking Dead", mas naquela altura este género não tinha muito público”.
Passados quatro anos, lança-se na comédia com a série “Um mundo catita”, exibida na RTP. “Eu era muito amigo do Manuel João Vieira. Ele foi o primeiro a pagar-me por um arranjo de música. Juntei-me com o João Leitão e decidimos fazer uma falsa biografia para o Vieira”. Como tinham “muito sumo”, decidiram fazer uma série de seis episódios baseada no Conto de Natal do Charles Dickens e na série "The Office". Sobre Manuel João Vieira? “É um géniozinho”.
Outro pé na BD
A banda-desenhada surge quase por acaso – à semelhança de muitas coisas na vida de Filipe Melo. Escreveu um argumento para um filme que nunca chegou às salas e transformou-o num livro de “quadradinhos”, em parceria com os argentinos Juan Cavia (desenho) e Santiago Villa (cor).
Na trilogia das “Aventuras de Dog Mendonça”, editada em Portugal pela “Tinta-da-China”, as personagens – “um lobisomem com muito mau feitio, um distribuidor de pizzas, um demónio de 6000 anos que está aprisionado no corpo de uma miúda de seis e uma gárgula” - têm 24 horas para salvar o mundo, sempre com Lisboa como cenário.
No primeiro livro, os heróis têm de lutar contra o exército nazi. O segundo é uma "remake" do apocalipse. No último da saga, “As fantásticas aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy III – Requiem”, os autores afastaram-se das referências históricas ou bíblicas, e partiram para um argumento que se focou numa história de vingança pessoal. “Um velho inimigo do Dog Mendonça regressa e vai fazer com que a vida dele se torne um pesadelo”. Tal como os próprios autores – que envelheceram desde o primeiro livro – também aqui as personagens acompanham a evolução do tempo e têm menos energia para determinadas aventuras.
O prefácio de John Landis
Para um amante de filmes de terror, é “um orgulho” ter os prefácios dos livros assinados por alguns dos seus heróis de infância. Para isso, “o papel do festival Motelx foi importantíssimo”, já que foi lá que os conheceu. John Landis – realizador de “Um lobisomem americano em Londres” – prefaciou o primeiro volume da sequela. No segundo, foi a vez do realizador do “Dia dos Mortos”, George Romero, entrar em cena. “Foi como conhecer Zeus”, conta Filipe Melo. Como se estavam a esgotar as “lendas do terror”, o prefaciador do novo livro “só podia ser” Tobe Hopper, realizador do mítico “Poltergeist”. Para o convencer? “Bastou um pastel de belém. E com os outros dois já em carteira, tudo ficou mais fácil”.
Foi, curiosamente, John Landis que fez com que a banda-desenhada fosse editada pela Dark Horse Comics, uma das maiores editoras norte-americanas do género. Para apresentar as personagens aos leitores internacionais, a equipa teve de criar “The Untold Stories of Dog Mendonça & Pizzaboy”, que integrou uma colectânea ao lado do “Hell Boy”. “Foi uma enorme pressão saber que ia ter Hell Boy ao lado da nossa banda-desenhada. Foi mesmo para nos queimarmos. Mas é a história que eu mais gosto e curiosamente é aquela que teve um prazo mais curto. Nem parece que fui eu que a fiz”, contra entre gargalhadas.
“As fantásticas aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy III – Requiem” foi lançado esta semana no Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora. Esteve a decorrer, até ao dia 1 de Novembro, uma campanha de crowdfunding que ultrapassou o objectivo previsto (6645 euros, dos 4000 estabelecidos inicialmente). “É o primeiro livro em que não vamos perder dinheiro”.
O terceiro volume assinala o fim da série. Porquê? “É preciso saber quando acabar e acho que faz sentido neste momento”. Agora? “É tempo de fazer outra coisa em que perca dinheiro”.