Cultura vadia

Tratando-se a classe dos artistas uma das mais requisitadas a trabalhar de forma gratuita (a.k.a. “para o enriquecimento do portfólio”), termino a noite com um pensamento: será preciso a arte tornar-se vadia para passar a ser devidamente valorizada?

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AlexAkopyan/Flickr

Passam três minutos da meia-noite num ontem que já é hoje, e eu em modo Flash Gordon pelas ruas de Lisboa, quarenta e cinco quilos apressados numa corrida contra o tempo: falhar a última passagem do metro poderá significar uma noite ao relento.


Grata pela minha eterna aversão aos saltos altos, galgo Chiado acima num jogo de Tetris versão humana, moldando-me aos espaços vazios por entre a massa irregular que popula a rua.


Com uma piscadela e um sorriso na direcção de Fernando Pessoa (ponto de referência para tripeiros inexperientes), cruzo o Largo em passos ligeiros enquanto vasculho a carteira à procura do passe diário.


Mas eis que uma caixa de som “aterra” no preto e branco da calçada portuguesa e, no premir de um botão, a noite é invadida por sons de hip-hop. Ergo o meu olhar na direcção do Poeta do Chiado, cercado agora por um volumoso público.


Rendida à curiosidade, furo o meu caminho por entre a multidão até atingir a boca do “palco” aonde um jovem rapaz parece prestes a desmoronar-se. De pele escura e corpo esguio, executa movimentos dignos de uma criatura fantástica saída da mente de Guillermo de Del Toro, assombrando os espectadores com a leveza com que brinca com a flexibilidade humana.


Numa performance na qual o "pop&lock" tomam proporções surreais, observo com fascínio a bizarra figura que se movimenta no centro do palco cujo rosto é tomado por uma expressão de puro deleite.


Meros passos atrás uma proeminente cabeleira afro começa a dar sinais de vida. Batida após batida, o artista movimenta-se na direcção do palco enquanto o seu colega começa a retirar-se, numa animada espécie de tag team dançado.


Completamente entregue à performance, assisto sem palavras o jovem que domina o ritmo. Exala uma energia criativa de tal modo poderosa que chega a “saltar” do seu corpo, como se nos envolvesse num agradável abraço que convida a fazer parte do processo de criação.


Há uma transição improvável com a entrada do terceiro elemento: a banda sonora muda e uma jovem de cabelos escuros toma o palco. Com movimentos graciosos e cuidadosamente coreografados, serpenteia e encanta através de uma sedutora dança do ventre.


O espectáculo termina com a presença de todos os elementos numa combinação de estilos que nunca pensaríamos ver reunidos. O resultado é uma performance original e divertida que se constrói e desconstrói perante os nossos olhos de uma maneira leve e espontânea.


Bruno, André e Sabina, dezoito, dezenove e vinte e dois. Percursos que tiveram início em fraldas com a imitação de passos de dança em frente à televisão, até chegarem a espectáculos conjuntos e batalhas de rua em estilo techno. Três jovens, formados e autodidactas, cruzam o caminho na busca do sonho: tornar a dança a sua profissão e único meio de subsistência.


Com ganhos que rondam os setenta euros por noite em espectáculos de rua com a duração de quatro ou cinco horas, o grupo chega a atingir um lucro trezentos e cinquenta euros por semana. Uma soma reduzida para um futuro em dança, mas ainda assim considerável no panorama dos "street performers".

Tratando-se a classe dos artistas uma das mais requisitadas a trabalhar de forma gratuita (a.k.a. “para o enriquecimento do portfólio”), termino a noite com um pensamento: Será preciso a arte tornar-se vadia para passar a ser devidamente valorizada?

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