Hoje, os dispositivos de captação de imagem estão mais acessíveis do que nunca. Por exemplo, há meia dúzia de anos eram necessários mais de 15.000€ para adquirir uma câmara com ‘excelente’ qualidade de imagem, mas de padrão vídeo. Atualmente, câmaras por 1.500€ conseguem uma imagem de tipo... cinematográfica! E por bem menos, consegue-se um computador para editar imagem e som. Este ano, até o Óscar para melhor documentário foi filmado em parte com um iPhone e uma aplicação por menos de 2€. Já não há desculpas para não se experimentar. Criar e fazer filmes é outra coisa.
A maldita praga
Havendo esta acessibilidade dos materiais, a prática democratiza-se, porém, mais do que a criação de vídeos fruto de elaboração e conceptualização, antes ou no momento da sua captação, é naturalmente maior a utilização primária em modo de registo da realidade. Uma utilização que é frequentemente carregada de um equivoco: pensar-se que a tarefa de uso da câmara de “filmar” contém já atributos de realização, ou seja, atributos criativos.
Não vou aqui estipular um princípio estanque, porque pode ser discutível em determinados casos, mas convenhamos que muito dificilmente um retrato da realidade, do princípio ao fim em câmara fixa, terá lá muita elaboração ou grande imaginação. Ou mesmo que uma mera reportagem “bem montadinha” tenha também dimensão criativa. Mas o que é certo é que a creditação do “registador” com carga autoral acontece em alguns destes casos. Pior, infeta e propaga-se. E então se for um dinâmico registo vídeo de uma iniciativa sobre jovens criativos, de arte urbana ou de desportos radicais, é frequente aparecer no genérico o registador intitulado...“Realizador”. Lá está, essa bactéria contaminadora da condição de pretenso artista do audiovisual.
Exemplos desta praga atingem até certos meios televisivos, embora seja óbvio tratar-se de um flagelo que grassa essencialmente na internet. O meio por excelência da democratização de distribuição dos conteúdos vídeo. E para exemplificar melhor, diria que se trata, no fundo, de uma pestilência muito parecida com a do “Sr. Doutor”, essa nossa querida praga de estimação. E de difícil desinfestação, como se sabe.
Agora desinfetando esta minha ironia, é evidente que a praga não está na prática, mas sim numa certa pretensão. Assim como não é praga nenhuma a democratização do ensino superior, é sim, a pretensão de continuarmos a tratarmo-nos com a deferência de um título académico.
A bendita praga
Na verdade, a prática informal do registo de vídeo e áudio originou um fenómeno deveras interessante nos conteúdos audiovisuais online: os registos de performances musicais fora do espaço habitual, que eram o palco ou o estúdio televisivo. Sendo fruto de um meio que tem estreitado a proximidade na relação fã-artista, a visão aproximada de uma performance musical sem artifícios visuais apresenta uma quase intimidade ao qual os músicos têm sido sensíveis. Ajudando à transformação da postura do estrelato atualmente, menos endeusado e mais terreno. As redes sociais alargaram o espetro desta tendência nos artistas, e por consequência, a aceitação plena deste tipo de conteúdos.
Toda a gente já viu algum, e até já lhe conhece a génese, a partir do site francês “La Blogothèque”, que cunhou o género de “Concertos Portáteis” (concert à emporter/take away shows). E como é hábito na internet, estes fenómenos foram mimetizados pelo mundo fora em inúmeras versões indistintas, mas todas válidas. As que se destacam tem a particularidade de se diferenciarem, quer pelo espaço onde se filma: sempre em varandas, sempre em coretos, sempre em táxis, etc; quer pelo modo de filmagem: sempre em contra luz, sempre à noite, sempre ao pôr do sol, etc. Existem projetos para todos os gostos. Em exteriores ou em interiores.
Naturalmente, também surgiram em Portugal vários casos, ligados a órgãos de informação online ou completamente independentes. A facilidade e a gratuitidade de alojamento (youtube, vimeo, sapo, etc), e agregação da informação (sites de portefólio, facebook ou blogues, pois estes perduram após a paragem das iniciativas), tem permitido desenvolver projetos completamente “no-cost”. Alguns vêem nestas iniciativas um modo de traquejo técnico de captação de imagem e som (este, o aspeto técnico mais problemático), mas outros, a pura vontade de divulgar os músicos, ou mesmo a própria cidade. Como é o caso do projeto Musiquim em Viseu.
Porém, mais conhecido e interessante é sem dúvida o projeto AMPAGDP, que, apesar de ocasionalmente infestado da tal praga, foi capaz de criar um marco significativo: para além de nos devolver uma renovada atenção à diversidade do nosso universo musical, demonstra que já não se concebe a memória musical destes tempos sem a imagem vídeo.
Existem outros (ver lista ao lado) projetos válidos e recentes, surgidos em Aveiro, Leiria, e vários no Porto. Curiosamente, até aqui no P3 se proporciona exposição a uma iniciativa com a mesma lógica, mas ligada à dança, e sediada em Coimbra. Prova do tremendo potencial desta prática audiovisual para as cidades ou regiões com algum circuito cultural. O que pode significar uma via a explorar em termos de patrocínio.
A todos os que adorem música e as suas cidades, pois, não fiquem parados em lamúrias: façam, divulguem, REGISTEM! E claro, com critérios higiénicos mentais para não propagarem a praga. Basta apenas terem a consciência que este pode ser um processo para chegarem à criatividade, mas que não o é de todo.