A vida do fogo

Não defendo que se deixe as florestas arder. Defendo apenas que as florestas não se protegem com penas de prisão

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Jose Luis Gonzalez/Reuters

Os registos mais antigos da existência do fogo datam de há 400 milhões de anos, quando já existia vida no solo e os relâmpagos serviram de fósforo para atiçar o oxigénio do ar e os hidrocarbonetos da terra.


O fogo foi também a primeira força da natureza que o homem aprendeu a dominar e é das poucas tecnologias usadas por todas as culturas humanas da terra. Primeiro foi usada na caça, para empurrar os animais para armadilhas e cozinhar a sua carne. Depois foi usada na agricultura, para desbastar florestas e conquistar terrenos para o cultivo. Finalmente foi usada pela indústria, em fornalhas para moldar o metal, o barro e o vidro.


Mas o seu uso mais poderoso foi o de transformar a paisagem. Ora encurtando as distâncias da terra, através da locomoção a vapor, ora em queimadas de florestas. Muitas das paisagens naturais que conhecemos e acreditamos virgens foram moldadas pelo fogo. É o caso das montanhas da Escócia, cujas florestas foram queimadas para dar lugar às pastagens de ovelhas, ou as pradarias da América, criadas pelos índios para multiplicar as manadas de búfalos de que aqueles se alimentavam.


O fogo é, em termos científicos, uma oxidação muito rápida dos hidrocarbonos, isto é, da vida, cuja existência destrói e recombina. Sem vida não existe fogo: pode haver tufões, terramotos e tsunamis sem existir vida, mas não existe fogo sem uma vida orgânica que o alimente. E por isso os incêndios são mais abundantes e perigosos nos locais onde a vida prospera: nas cidades e nas florestas.


Mas além de ser destruição, o fogo é também renovação de vida. O incêndio desbasta a vegetação, deixando o sol e o vento arejar o solo, e transforma a vegetação antiga em cinzas que o fertilizam. Estima-se que em três anos a vegetação de uma área ardida se recomponha naturalmente, a menos que mão humana intervenha, quer introduzindo vegetação exótica, quer impedindo o habitat de se renovar.


Por tudo isto, os incêndios não são um caso de polícia, mas um caso de política. Os historiadores do fogo notam que ao longo dos séculos as grandes inovações surgiram de novos usos do fogo, e que as elites sempre se preocuparam em criar sistemas anti-incêndio, ao passo que os pobres e os revoltados usaram o fogo para tentar arranjar um espaço para sobreviver.


Não defendo que se deixe as florestas arder. Defendo apenas que as florestas não se protegem com penas de prisão, mas com uma decisão consciente entre deixar as florestas abandonadas como estão, ou implementar práticas cuidadosas de controlo e renovação das paisagens portuguesas. E, para isso, o fogo continua a ser uma das maiores ferramentas da humanidade.

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