A minha escola primária ainda conservava legado do Estado Novo: as carteiras inclinadas de madeira escura e metal, os quadros pretos de giz, os paralelepípedos em madeira e, aquilo que mais do que tudo me fascinava, um mapa de parede, com as cores já baças, onde se indicavam as províncias do país.
Foram muitos os recreios que passei em redor dele, a visitar com o meu dedo indicador os seus rios, serras, cidades e províncias. Nessa altura as províncias já não existiam como entidades administrativas, mas o mapa continuava a assinalá-las, remetendo para um tempo em que se acreditava que todos os transmontanos eram austeros e resilientes, todos os minhotos alegres e devotos, todos os beirões trabalhadores e taciturnos. Tal crença era expressa em livros supostamente científicos, e proclamada com orgulho pelos próprios transmontanos, minhotos, beirões, etc.
Não o sabia na altura, mas isso era ainda um resquício dos mapas de antes dos mapas, aqueles que não eram feitos de papel e geografia, mas de proximidade e distância humana.
Antes de a Idade Moderna ter inventado o Estado centralizado, e de este ter precisado de cartografar os territórios que dominava, a paisagem do homem era a paisagem daqueles que estavam à sua volta: a sua família, os seus amigos, os seus inimigos, os seus vassalos, os seus suseranos, os seus credores, os seus devedores. Era esse território de sangue, de relações, de compromissos, que definia a identidade de uma pessoa.
Depois veio o racionalismo e o Estado moderno, e esse Estado moderno queria que o território humano fosse também racional, dividido por cores e linhas e tracejados que indicassem quem era o quê, onde.
Assim nasceram os mapas nacionais, os serviços de cartografia e as fronteiras milimétricas. Foi a vontade de racionalizar o mapa humano que levou o barão Haussman a arrasar as vielas de Paris para construir as grandes "boulevards", alegadamente para resolver problemas sanitários, mas também para arrumar os parisienses em "arrondissements" que os tornassem menos perigosos. A mesma razão que presidiu à baixa pombalina, à avenida da Liberdade e à avenida dos Aliados. A mesma razão que presidiu à divisão de África pelas potências coloniais, à revelia das afinidades e ódios entre as tribos reunidas ou separadas por essas fronteiras. A mesma razão que leva autarquias a moverem famílias carenciadas de um bairro problemático para outro bairro problemático, tal como o Estado Novo arrumava os taciturnos para um lado e os devotos para outro, ou nós arrumamos os nossos amigos, conhecidos e contactos nas redes sociais por afinidade ou interesse.
E sempre pela mesma razão: para simplificar e usar esse mapa humano ou terrestre e ele se tornar um pouco menos intimidante, um pouco menos caótico, ilusoriamente seguro.
Hei de voltar aos mapas.