Sou brasileiro. Nasci neste país de dimensões continentais, e calhou-me a identidade de carioca. Pós-muro de Berlim e pós-ditadura militar, sobrevivi os anos mais sombrios dessa antiga capital, que se entregou ao tráfico e à violência.
Eu era criança quando o Rio de Janeiro encabeçava as listas de cidades mais perigosas do planeta. Assistíamos calmamente às mortes da noite anterior no telejornal do café-da-manhã. Essa Gomorra foi minha infância e de muitos outros. A tragédia que era nossas vidas diárias misturava-se entre terror e aceitação. Aceitava-se como natural não só a violência, mas também toda a corrupção e descaso de Brasília.
Hoje, no entanto, esse conformismo geral da sociedade parece estar com dias contados. Às vésperas de receber dois grandes eventos mundiais, o Brasil parou nos últimos dias por manifestações em diversas capitais do país. Protestava-se contra o aumento das passagens de ônibus de vinte centavos de real, valor equivalente a sete cêntimos de euro.
A elevação no preço dos bilhetes de ônibus é uma consequência óbvia do descontrole da inflação pelos governantes, os quais fazem rodar dinheiro a todo vapor para construções de estádios bilionários. Fomos então às ruas no Rio, em Porto Alegre, Curitiba, Niterói, Belo Horizonte e outras tantas cidades, onde se aglomeravam legiões de indignados.
Cidade em pé de guerra
Fato é que essa quantia aparentemente módica foi o estopim de algo muito maior. Ganhando as ruas, fomos retribuídos com uma represália desumana ao direito democrático de manifestar-nos. Onde a gota d'água caiu mais pesada foi certamente em São Paulo, na última quinta-feira, dia 13 de junho. A manifestação da maior metrópole brasileira foi seriamente reprimida pela polícia militar. Abriu-se fogo contra à massa que gritava "Sem violência!", atirou-se em jornalistas que berravam: "Somos da imprensa!".
A cidade parecia estar em pé de guerra. Os estrondos das bombas e a fumaça escondiam tanto os flagelados por essas truculências quanto os atores desses descomedimentos. O que ali ocorreu ficou perdido entre a madrugada silenciosa da sexta- feira. O Brasil finalmente estreara na categoria de revolução pelas redes sociais; a primavera finalmente chegara aos trópicos.
Inundaram-se as "timelines" com denúncias sob as mais diversas formas: vídeos, fotos, depoimentos, desabafos. A ressaca do dia seguinte entretanto deixou a todos mareados; como engolir tamanha ferocidade, bestialidade e desrazões? Os grandes jornais brasileiros, ou a mídia em geral, não souberam responder essa questão — suas conivências com o governo certamente não os permitiriam. Essa pergunta paira desde então sobre nossas cabeças.
Vejo e revejo os vídeos feitos nessa noite e me vêm à mente imagens de uma ditadura repleta de terrorismos e torturas. Mas vêm-me também as imagens de Tianmen em 89, daquele enigmático chinês que não saía de frente do tanque; vejo Paris em 68, Londres em 79 e Istambul em 2013. "São Paulo é como o mundo todo", cantava a Tropicália brasileira. E é verdade — os "anonymous" mascarados da Turquia estão pelas alamedas do Brasil, os jovens portugueses, espanhóis e gregos são os mesmos que correram pelas ruas de São Paulo naquela noite, desviando-se das bombas e dos tiros da polícia.
Foram esses vinte centavos o preço de uma consciência política de toda uma nação? Talvez. Mas que seja: a mistura entre terror e aceitação não deve mais ser mais solúvel. Os céticos afirmam: essa é uma brisa temporária, o brasileiro não tem vocação para contestações políticas. Os reacionários chamam-nos de vândalos e bestas. Mas esses são todos receios de mudar visões tradicionais enraizadas ao longo de duas décadas de governo autoritário. É por isso que eu brado a todos: vou-me embora para São Paulo. Vou porque "lá a existência é uma aventura", e porque tenho direitos pelos quais lutar. Essa é a revolta do homem; essa é a revolta de toda nossa geração.
* Crónica escrita ao abrigo do novo Acordo Ortográfico