A “mulher de vermelho” nos protestos da Turquia não quer ser a “mulher de vermelho”

Jovem que se tornou símbolo dos protestos na Turquia desvaloriza a fama. "Muitas pessoas que estiveram no parque também foram atingidas com gás lacrimogéneo"

Foto
Quanto mais nos atiram spray, maiores ficamos, diz um cartaz com a sua imagem Osman Orsal/Reuters

No seu vestido de algodão vermelho, colar e saco de pano branco ao ombro, podia estar a atravessar um relvado numa festa num jardim; mas perante ela está um polícia que lança um jacto de "spray" de gás lacrimogéneo que atira o seu cabelo para cima.

Foi partilhada incessantemente nas redes sociais e na imprensa online e replicada como "cartoon" em cartazes e autocolantes — a imagem da “mulher de vermelho” tornou-se o símbolo das raparigas que se manifestam em Istambul, Turquia. Mas a verdade é que Ceydar Sungur, o seu verdadeiro nome, não quer ser um ícone do movimento. A fama é-lhe desconfortável. "Muitas pessoas que estiveram no parque também foram atingidas com gás lacrimogéneo", disse, em declarações ao canal turco TV 24, citadas pela CNN. "Não há diferença entre eles e eu."

O que se está a passar no país é uma "revolta da população". "Não estou surpreendida", confessa Ceydar, referindo-se à forma como um protesto inicialmente pacífico desencadeou actos sucessivos de violência. 

A "essência do protesto"

Ainda assim, a imagem da jovem turca tem aparecido em todo o lado. “A fotografia condensa a essência do protesto”, comentou a estudante de Matemática Esra, em Besiktas, perto do Bósforo, num dos centros dos protestos que começaram no fim-de-semana. “Simboliza a violência da polícia contra manifestantes pacíficos, pessoas que estavam apenas a tentar proteger-se a si próprias e o que valorizam.”

Num dos desenhos, plastificado e colado numa parede, a mulher aparece muito maior do que o polícia. “Quanto mais nos atiram 'spray', maiores ficamos”, diz o cartaz.

Estados Unidos, União Europeia e grupos de defesa dos direitos humanos expressaram preocupação pela acção dura da polícia turca contra os manifestantes. O primeiro-ministro, Recep Tayyip Erdogan, descreveu os manifestantes como “andando de braço dado com terroristas”, uma imagem que parece especialmente pouco apropriada à mulher de vermelho.

Havia outros manifestantes vestidos de modo mais combativo e a atirar pedras, mas o grande número de mulheres, muito jovens, em Besiktas ou na Praça Taksim era notável.

Com óculos de natação, máscaras cirúrgicas contra o gás e lenços leves ao pescoço, Esra, Hasine e Secil estão apreensivas na zona de Besiktas na segunda-feira à noite, à medida que se juntam cada vez mais pessoas e a disposição vai ficando mais sóbria. Pertencem, talvez como a mulher de vermelho, às hordas de mulheres jovens, educadas, que acham que têm algo a perder na Turquia de Erdogan. Sentem-se ameaçadas pela sua promoção do lenço islâmico, símbolo da fé feminina.

Carreiras para mulheres

Muitas das mulheres apontam a nova lei do aborto como sinal de que Erdogan, que aconselhou as mulheres turcas a terem três filhos cada, quer voltar atrás nos direitos das mulheres e deixá-las confinadas a papéis tradicionais. “Respeito as mulheres que querem usar lenço, estão no direito delas, mas também quero os meus direitos protegidos”, diz Esra. “Não sou esquerdista ou anticapitalista. Quero ser uma empresária e viver numa Turquia livre”, acrescenta.

Mustafa Kemal Atatürk, fundador da república secular criada em 1923 sobre as ruínas do império otomano, encorajou as mulheres a usar roupas ocidentais em vez dos lenços e promoveu a imagem da mulher com uma profissão. Ironicamente, Erdogan é visto actualmente, para o melhor ou pior, o líder mais dominante na política turca desde Atatürk.

Chegou ao poder em 2002 e mantém-se com uma popularidade sem rival, conseguindo grande apoio no coração conservador do país, a Anatólia. As manifestações do fim-de-semana, que se mantiveram durante a semana, sugerem, no entanto, que a sua popularidade está a descer pelo menos na classe média que o apoiou nos anos iniciais de reformas políticas e económicas que cortaram o poder dos militares.

“Erdogan diz que 50% das pessoas votaram nele. Estou aqui para mostrar que pertenço aos outros 50%, a metade da população por cujos sentimentos ele não mostra qualquer respeito”, diz Hasine, estudante de Química. “Quero ter um futuro aqui na Turquia, uma carreira, a liberdade para viver a minha vida. Mas tudo isso está sob ameaça. Quero que Erdogan perceba”, acrescenta.

Erdogan, um religioso que nega ambições islamistas para a Turquia, rejeita qualquer sugestão de que queira pressionar as pessoas para a religião. Diz que as novas leis do álcool, também criticadas pelas mulheres, foram aprovadas para proteger a saúde pública e não por motivos religiosos.

Os manifestantes estão a aparecer mais bem preparados agora do que quando a instabilidade começou. Alguns têm chapéus duros, outros estão vestidos de preto, a maioria calça ténis de corrida. Mas muitas mulheres insistem em aparecer de um modo tão feminino como a rapariga do vestido vermelho. “Claro que estou nervosa e sei que posso estar em perigo aqui. Mas para mim, nada é pior do que o perigo de perder a república da Turquia, as suas liberdades e espírito”, disse Busra, estudante de Economia, de 23 anos, que acrescenta que os seus pais apoiam o seu protesto.