Não posso deixar de acusar a maior das surpresas ao notar que a Isabel Moreira, cujo trabalho em nome dos direitos LGBT e de género tem sido nada menos do que louvável e incansável, seu deu ao trabalho de, de certa forma, responder ao meu texto.
Ao mesmo tempo, também devo dizer que senti alguma estranheza ao ler o seu texto, como se de uma polarização binária estivéssemos, ambos, a falar. Nessa perspectiva, de um lado estariam as pessoas a favor da co-adopção, que se preocupam com o “superior interesse da criança” e, do outro lado, as pessoas contra a co-adopção, que não têm esse tipo de preocupações e querem apenas “o direito a qualquer coisa”.
Creio que isso poderá ter que ver com ter que escrever para um tão limitado número de palavras: porque, no fim de contas, eu concordo em absoluto com a esmagadora maioria do que a Isabel Moreira escreveu. E, ainda assim, é possível não se ser contra a co-adopção, mas ser-se crítico dela.
Crítico na medida em que a co-adopção representa uma visão altamente limitada dos superiores interesses das crianças. Aliás, o Fernando André Rosa (das Panteras Rosa) já o disse antes: “[…]discordo, da crítica comum que afirma normalmente que o fim da discriminação nesta matéria só estará conseguida quando homossexuais e heterossexuais tiverem os mesmos direitos para adoptar crianças. […]a lei de adopção heterossexual (chamamos-lhe assim), ignora e renega muitas formas de parentalidade que vão para além da ambição da adopção por pessoas do mesmo sexo, uma vez que continua a ignorar e a limitar situações de facto — que já existem — onde a parentalidade é exercida por mais de duas pessoas, com ou sem vínculo familiar entre si”.
Ou, na mesma linha, cito Sérgio Vitorino (também das Panteras Rosa): “Quando um movimento social prescinde de exigir tudo, leva menos ainda do que o pouco com que se contenta. Quando desiste de exigir para todos e não apenas para uma minoria da comunidade que representa, divide o movimento e enfraquece a reivindicação global (parentalidade plena, procriação medicamente assistida, adopção, co-adopção por inteiro, poliparentalidade...). […] Sempre que exigimos e lutamos por conquistar, conquistamos. O resto é derrotismo à partida e jogar pelas regras do heterosexismo, já para não falar de homonormatividade, que é outra face do heterosexismo (e não, isto não é uma crítica às escolhas de vida de ninguém, antes que me acusem disso)”.
O meu texto não pretendeu nunca usar os fins das relações (seja entre que pessoas for) para combater a co-adopção, mas sim para exigir mais do que a co-adopção, para exigir visibilidade para as situações familiares (que também estão “nas nossas escolas, nas nossas vidas”, como escreve Isabel Moreira) que não se esgotam na parentalidade a dois, e que a co-adopção não resolve.
A meu ver, e infelizmente, o texto de Isabel Moreira continua a partir dos “casais”, da “vida em comum com o cônjuge” — enfim, de exemplos que parecem contradizer “a complexidade do universo familiar, a complexidade da parentalidade”, e que podem invisibilizar outros modelos familiares que já existem, e que poderão vir a existir, mas que não têm realidade conceptual clara pela lei actual ou sequer pela lei em discussão.
Não, não pretendo desprezar “a dinâmica relacional em nome da cópula” — pretendo desligar uma da outra e também das relações românticas; não pretendo “valorizar a mãe (necessariamente biológica)” — pretendo desvalorizar a biologia, porque não é com biologia que se explicam afectos.
Porque, como afirmou Fabíola Cardoso (do Clube Safo), “qualquer forma de parentalidade saudável, qualquer forma de parentalidade vivida, […] é uma parentalidade poli”: as vidas das crianças são feitas de redes sociais de apoio que não se esgotam nos dois pais, duas mães, um pai/mãe, ou afins variações. A apologia da dinâmica relacional implica ver a parentalidade como um direito das crianças não anexável às relações (amorosas, presentes ou passadas) entre adultos.