Na sexta-feira, dia 17 Maio, num momento que já está gravado na história, a maioria dos Deputados da Assembleia da República (AR) aprovou, na generalidade, o projeto de lei que prevê a possibilidade de co-adoção por parte do cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo.
É certo que o projeto é da autoria de vários Deputados do PS, mas o seu conteúdo aponta para uma transversalidade que ficou patente no emocionante resultado da votação.
Assim é, uma vez que não se trata de experimentalismos, mas antes de pôr fim a uma desproteção jurídica injustificada de crianças que já existem, que já são educadas em famílias homoparentais.
Não só a recente decisão do TEDH que condenou a Áustria por não prever este regime, fazendo, na decisão, uma lista de países na mesma situação (entre os quais figura Portugal), mas também os estudos mais conceituados a nível mundial sobre esta matéria, contribuíram para que a AR tivesse em conta, não as dúvidas que alguns ainda possam ter sobre os direitos dos homossexuais, mas o superior interesse da criança.
A realidade tem muita força e esta é a de centenas de famílias já existentes nas quais crianças, com um desenvolvimento perfeitamente normal, têm duas figuras parentais, mas devido a um buraco jurídico, só estão, no plano do Direito, ligadas a um dos seus progenitores.
Enquanto no caso de uma mulher que seja mãe adotiva de uma criança e que case ou viva em união de facto com um homem, este pode, no superior interesse da criança, co-adotar a mesma, no caso em que essa mulher case ou viva em união de facto com uma mulher, aquela possibilidade não existe.
As consequências deste retrato da realidade são devastadoras: basta imaginar que uma criança é educada por duas mulheres, naturalmente, tal como no exemplo referido de um casal de sexo diferente, reconhecendo a criança ambas como progenitoras, e, na ausência da mãe reconhecida legalmente, a outra mãe é inútil para decisões urgentes, como decisões médicas; basta imaginar que se morrer a mãe reconhecida juridicamente, a criança, por exemplo com dez anos, sofre uma dupla orfandade, pois pode ser arrancada dos braços da sua mãe, quem a educou e amou, assim, de um dia para outro, indo nesse abandono traumático outras figuras familiares como os avós ou os tios.
É no intuito de acautelar situações como as descritas, e outras, que existe a co-adoção para casais de sexo diferente. O Direito reconhece que é do superior interesse da criança que uma parentalidade de facto seja acautelada.
Tudo aconselha, tal como reconheceu, em comunicado, o Instituto de Apoio à Criança, logo após a votação, que também o interesse superior da criança seja acautelado, no caso de famílias homoparentais, através da co-adoção.
Independentemente das convicções de cada um, foi claro que no debate da generalidade veio ao de cima esta preocupação que sustenta o projeto de que sou subscritora: o superior interesse da criança.
Por isso mesmo, o resultado da votação foi o de uma transversalidade da questão.
Mesmo quem votou contra, como bem salientou o Deputado Pedro Delgado Alves, não mostrou, na sua intervenção, indiferença, antes pelo contrário, ao problema enunciado a partir, repito, de uma realidade que nos assola as consciências.
O projeto de lei não pede mais para estes casos do que o regime existente para a co-adopção já existente no caso de casais de sexo diferente. Aliás, remete para esse mesmo regime, o que significa que não há co-adoções automáticas, há regras, intervenção da segurança social, sentença judicial e, claro, a garantia de que não existe uma filiação pré-existente.
Chegou o momento da especialidade antes da votação final global. A referida transversalidade do superior interesse da criança impõe-nos o dever, enquanto autores do projeto, de abraçar uma atitude de abertura e de humildade a todas as propostas de todos os Partidos que possam deixar ainda mais claro o que está aqui em causa.
Se a democracia acarreta tantas vezes conflito insanável, que estas crianças à mercê do infortúnio e da insegurança, sejam o motor de um diálogo parlamentar que permita o maior consenso possível.
Esta crónica foi escrita ao abrigo do novo acordo ortográfico