Kentucky Route Zero: os fantasmas do Sul dos EUA

Kentucky Route Zero toma o teatro como referência. No conjunto, terá cinco “actos” (o primeiro foi lançado em Janeiro)

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Kentucky Route Zero é um jogo sobre os espectros do Sul dos Estados Unidos. As personagens fantasmáticas, afectadas pela “dívida”; a mina desactivada, emblema da crise económica da região; o "bluegrass", ícone estadual, extinto como os músicos que o interpretam; e uma auto-estrada subterrânea secreta como via de escape quimérica.

 

O jogo anterior de Jake Elliott e Tamas Kemenczy, Ruins, era uma fantasia onírica em que um cão perseguia coelhos, perseguido ele próprio pelas sombras do passado. Em Kentucky Route Zero, Conway, um condutor que faz entregas para um antiquário, é acompanhado por “um velho cão de caça de chapéu de palha”. Ambos, cão e chapéu, “já viram melhores dias” — uma das chaves interpretativas de um jogo sobre tempos sombrios em estilo linha clara. 

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Carlos Mendes é docente do Instituto Politécnico de Viana do Castelo

 

Sendo um jogo de “aventura”, Kentucky Route Zero retoma ele próprio um género que já conheceu melhores dias. Das outrora populares “aventuras gráficas”, herda a ênfase na narrativa e na caracterização de personagens, mas a tímida inclusão de puzzles, raros e simples, será apenas um escrúpulo de género. O puzzle realmente desafiante consiste em determinar o sentido dos vários fragmentos narrativos dispersos ao longo do jogo.

 

Kentucky Route Zero toma o teatro como referência. No conjunto, terá cinco “actos” (o primeiro foi lançado em Janeiro) e os interfaces textuais em cada “cena” adoptam convenções dramatúrgicas como a inclusão de rubricas. Por outro lado, quando se exploram as estradas secundárias da região, encontram-se pequenas “aventuras textuais”, micro-contos inspirados pela multiplicação recente de histórias interactivas criadas com o software Twine

 

A centralidade do texto no jogo é também a centralidade da palavra no “Sul”, segundo o retrato que dele se propõe, em que sobressai a retórica elaborada dos personagens e a tendência destes para abordarem a realidade através de enigmas. A centralidade do texto é ainda uma forma de resistência a uma cultura de visualidade, de ver sem olhar, que muitas vezes prevalece no meio dos videojogos.

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