Adeus, Bolhão

Sete retratos e sete depoimentos de vendedores do Mercado do Bolhão, Porto, que vão abandonar este espaço, que este sábado fechou para obras.

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O Mercado do Bolhão, no Porto, fechou ontem as portas, para que o edifício seja restaurado. Quando reabrir (espera-se que dentro de dois anos), com o terrado como mercado de frescos, e o piso superior com restauração e outras lojas, já não será certamente o mesmo. O espaço físico vai mudar e alguns vendedores também serão diferentes.

Dos cem comerciantes do interior, 28 já decidiram não regressar. Dos 40 inquilinos do exterior, 14 também optaram por ir embora. Os que ficam estarão, quase todos, no novo mercado temporário, no Centro Comercial La Vie, que abre portas no dia 2 de Maio. Deverão ficar por ali até que as obras do Bolhão terminem e possam voltar, com novas regras, para uma velha casa transformada em nova.

Já não será esse o futuro de Júlia, Maria, Alcino, Marília, Conceição ou Graça. A saúde, a descrença no projecto futuro ou o desalento fizeram-nos desistir do Bolhão, depois de uma vida inteira ali passada. Nestes retratos e nas suas histórias, contadas na primeira pessoa, fica o adeus de quem já não quer voltar.

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Os turistas adoram isto, mas compram pouco

Maria Sousa, 77 anos

Estou cá há 69 anos. Com oito aninhos vinha a pé e ia a pé, para Vila Nova de Gaia. Saíamos de casa às 5h, 5h30. O nosso negócio foi sempre o de hortaliças, e aos 16 anos tomei conta desta banca. Ui, antigamente… O povo andava aos empurrões. A gente vendia tanto, tanto, tanto. Vendia às 40 dúzias de agriões, agora não se vende um molho. Agora, olhe, em dois dias ainda não vendi para ir ao café. E os turistas adoram isto, o mercado chama a atenção, mas compram muito pouco. Um tomate, uma cenoura, “carróte”, pois. Isto não precisava de ter chegado ao que chegou. Foi o Rui Rio, com os andaimes, que piorou tudo. Ele matou-nos, foi um grande maroto para nós. Eu vou-me embora por já não poder. Já há oito anos que ando de canadianas, por causa das artroses. Já caí por duas vezes. Tem sido muito duro para mim. Agora venho de comboio, mas ainda tenho que andar uns 20 minutos, porque, apesar de a minha casa ficar à face da estação, em Francelos, tenho que dar a volta ao quarteirão. E à noite, a mesma coisa, mais 20 minutos a andar no sentido contrário. Do que vou ter mais saudades é dos meus fregueses. Dou-me bem com os meus vizinhos daqui, mas os fregueses estão-me cá dentro, são meus amigos. Eles dizem que também vão ter pena, muita pena e que não vêm para aqui depois. Eu não sei como vai ser depois. Se for para ser como o Bom Sucesso, é uma porcaria. Eles na câmara dizem que não. Vamos ver. Mas não sei se quero vir ver. Não me posso meter em casa, mas tenho tantos problemas para caminhar…

Se eu acreditasse que eram só dois anos…

Marília Brandão, 75 anos

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Estou aqui há 64 anos, a gente fazia o exame da 4.ª classe e vinha trabalhar. Saíamos às 5h30 e vínhamos a pé, de Gondomar. Era trabalhar no duro. A minha mãe vendia hortaliças lá em cima e, a ver se eu enjoava disto, arranjou uma colega para onde eu ir. Mas eu gostei e fui vender hortaliças também. Vim ganhar cinco escudos por dia, mas depois outra vendedora, uma das fortes, a quem chamávamos fornecedoras, ofereceu-me 20 escudos por dia e nem falei com a minha mãe. Aceitei. Mais tarde, uma amiga que tinha uma barraca de frangos queria que eu fosse para lá, mas um compadre da minha mãe, que era médico, não queria ver-me no Bolhão e meteu-me na Bial. Estive lá quase cinco anos, na preparação e embalagem. Adaptei-me bem, mas as saudades e a facilidade, aqui, em estar com os filhos… Oh, eu gosto tanto disto!... Voltei. O meu estabelecimento agora é de aves. Tenho pato, peru, frango e também coelho. Chamamo-nos galinheiras. Dantes comprávamos os animais vivos, matávamo-los aqui e mandávamos para os talhos e mercearias. Durante anos não podia haver talhos e supermercados neste quarteirão. A câmara não autorizava porque isto é o mercado municipal. Nós é que abastecíamos as mercearias, os cafés. Depois, isso acabou. Para o meu negócio, isto está arrumado. E que vou eu fazer, recomeçar uma actividade aos 80 anos? Se fosse pouco tempo, se eu acreditasse que eram só dois anos, se calhar ainda voltava. Mas não acredito. E também acho que o mercado temporário não vai funcionar. Mas aqui também não funciona, não é?... Tudo tem o seu limite. E depois, quando reabrir, estou convencida que vai correr bem. Não vai ser fácil, mas o local não podia ser melhor. A minha neta ainda diz: “Ó avó, voltavas com gourmetgourmet, umas natinhas e um café ou um vinho...” Mas eu digo-lhe: “Ó filha, eu sou portuguesa, não quero essas coisas de gourmet. Vou arrumar as botas. Tenho muito com que me entreter em casa...”

Saio muito triste

Alcino Sousa, 62 anos

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Estou cá desde 1979, mas cansei-me de tanto lutar e não ter resultados. Fui presidente da Associação de Comerciantes do Mercado do Bolhão e quem conhece o meu passado sabe o que fiz. O trabalho feito ninguém mo tira e há várias coisas que me deixam orgulhoso: ter-se conseguido que a Metro do Porto pagasse aos comerciantes, por causa das obras, o abaixamento das rendas nos últimos anos, até a instalação do Multibanco. Eu nunca quis que o Bolhão fosse para privados, mas acreditei na TramCrone, claro que acreditei. Tínhamos garantias, ficávamos durante 25 anos e a renda para os comerciantes do interior era a mesma, estava escrito. E só quando está tudo encaminhado é que aparecem uns senhores a desestabilizar, a criar guerras uns com os outros, difamações contra mim, ninguém podia falar no nome do Alcino, Jesus! Meti-me no meu cantinho, mas ainda fui trabalhando, fui dando a assistência que conseguia. Agora, custa-me muito deixar como deixo. As condições que me apresentaram… Primeiro, disseram que eu não iria ter carne de porco nem charcutaria, só carnes vermelhas. Eu disse que isso não era possível, eu tenho alvará de talho e dá para vender isso tudo. Pensaram e já me davam essas coisas, mas tiravam-me as aves. Depois, ainda propus mudar de ramo, para restauração, e ficar com este espaço, porque fiz aqui grandes investimentos. Não consentiram. Se não consentem, o que vou fazer? Não acredito na justiça. Fiz uma exposição à câmara, na qual digo que decidi receber a indemnização que me foi proposta, mas que, mesmo assim, me sinto lesado por não poder continuar a usufruir das minhas duas lojas, a 2 e a 3, devido a decisões impostas pelos serviços da câmara. Não posso dizer que fui maltratado, não senhor. Foi tudo com respeito, mas tudo tem uma ética e, aqui, a ética é esta. Eu ficava aqui, mudava de ramo. Os meus filhos foram criados aqui. Saio muito triste.

Vão-me tirar a vida do meu Bolhão

Graça Santos, 55 anos

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Eu estava a sair da barriga da minha mãe, tinha três dias quando vim para o Bolhão. O meu berço eram as gamelas. A minha avó vendia batatas lá em cima, e a minha mãe estava cá em baixo. Ainda fiz o 1.º e o 2.º ano, mas a minha mãe queria-me aqui, como via que eu tinha talento. Comecei a vender logo aos oito anos. Ela ficou viúva muito cedo, mas era uma mulher de luta. Saía de casa às 3h para ir para Matosinhos e eu vinha com os meus irmãos, sozinhos, no autocarro. Toda a gente dizia: “Olha os filhos da Chiquinha, tadinhos, tão cedinho, às 6h da manhã a vir para aqui...” Éramos criados aqui descalços, roubávamos estilhas de bacalhau, ao Borges merceeiro, que era o nosso comer logo pela manhã. Foi uma vida muito massacrada, com pau de um lado e pão no outro. Graças a Deus nunca nos faltou nada, mas também nunca nos faltou porradinha. Vendemos sempre peixe, mas não era como agora. Vinha congelado e era partido à faca, com martelo e cinzel. Ganhava-se dinheiro nessa altura. Eu era a rainha da beleza aqui no Bolhão, sabe? Tinha clientes, ó filha, que me compravam peixe só porque queriam casar comigo. A quantidade de rosas vermelhas que me vinham aqui trazer, Deus me livre. Os meus pais não têm olhos azuis e foram fazer seis filhos de olhos azuis, saímos a uma tia. Sabe que até havia doutores que diziam à minha mãe para ela dar alguns filhos às pessoas que não conseguiam ter? E a minha mãe dizia sempre: “Não, minha querida, eu não sou gata para dar filhos.” Melhor fosse. Assim não estava nesta porcaria e não me ia agora embora com tuta-e-meia. Eu nunca quis sair daqui e agora decidi sair porque isto não vai para melhor. Vão-me tirar a vida do meu Bolhão. Só queria que me pagassem o que é justo e não estão a pagar. É que a mim ainda faltam dez anos para a reforma, e eles não pensam nisso. Deviam dar-me o fundo de desemprego, além da indemnização. Era o mínimo. Nem quero olhar para o Bolhão do futuro. “Está lindo”, pois!... A gente não vive de belezas nem de fachadas, vivemos de realidade. No futuro, as despesas vão ser tantas que elas vão todas embora, vai ser como no Bom Sucesso. Saio com uma amargura muito grande. Não perdoo o que me fizeram.

Estas bancas vou dá-las a uns mocinhos que mas vieram pedir, para fazer um teatro, a fingir que é o Bolhão

Júlia Gaspar, 83 anos

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“Não fico até ao fim. Ainda há pouco estive um mês fora por doença. Já há mais de uma semana que não compro nada para reabastecer a minha banca de hortaliças. Foram mais de 50 anos aqui, mas agora, o coração… De noite, não consigo dormir, falta-me o ar. Fico tão cansada, tão cansada. Passo a vida no hospital, não venho um dia ou dois, deixo tudo aqui, mas depois há coisas que tenho de deitar fora. E não ganho nada, nada, nada. Só perco dinheiro com as coisas que deito fora. Dantes é que era. Eu nunca fui de abastecer os restaurantes, mas tinha muitas senhoras que eram minhas clientes. Mas, depois, deixaram de vir as senhoras e as criadas das senhoras. Às vezes ainda me aparecem aí algumas pessoas... Olhe, ainda há uns tempos parou aí uma moça. Olhava, olhava, e eu: “Quer alguma coisa, menina?” E ela diz-me: “Estava a olhar para a D. Júlia, que me dava saquinhos”. Eu dava saquinhos de compras às meninas, aos rapazes, não. Mas também parou aí um rapaz, com latas presas aos pés, naquelas coisas dos estudantes. Ele parou, os outros já iam longe e eu, claro: “Quer alguma coisa, menino?...” “Quero é dar um abraço à D.ª Júlia”. Era o filho da dr.ª Teresa, uma antiga cliente. Agora, vou-me embora. A minha colega vai ficar com as gilas. Estas bancas vou dá-las a uns mocinhos que mas vieram pedir, para fazer um teatro, a fingir que é o Bolhão. O resto vou desmanchar para lenha, para a lareira. Tenho que limpar tudo, querem que eu entregue a chave e dizem que só querem ver o chão neste sítio.

Vão agora ensinar-me a ajeitar hortaliça?

Conceição Sousa, 69 anos

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Estou quase há 50 anos no mercado, esta banca era da minha mãe. Já estou saturada. Ir para o outro lado, não vale a pena, querem muitas exigências e eu estou velha para isso. Agora, computadores… Querem que vá tirar um curso para ajeitar hortaliças. Então, 50 anos nisto e vão agora ensinar-me a ajeitar hortaliças? E balança electrónica... Vou ter saudades, mas o sítio para onde vão as colegas não convém a ninguém. Eu gosto de estar livre, fui sempre habituada assim. Com o sol e a chuva, a gente sente o dia que é. Somos como os passarinhos, gostamos de estar livres. Disseram logo que ia ser muito rigoroso. Que já não ia poder vender alhos e limões ou feijões, só hortaliça. É para a gente se ir chateando e ir embora. Vai ser como o Mercado do Bom Sucesso. Fica um ou dois e depois desistem e vão embora. Se a minha reforma não fosse tão pequenina, já tinha ido. Agora, quando as portas se fecharem, fecho também. Como está agora, não dá gosto. A gente está aqui horas e horas e horas à espera de um cliente. Toda a manhã não vendi um molho de grelos. Antigamente a gente não dava vazão ao povo que aqui vinha. Aquela alegria que a gente tinha, de arranjar isto e aquilo. Tinha dias que nem comer podia, tantas eram as pessoas. Era mais bonito, mais alegre. Dava gosto. Agora não. Agora não dá. Não se ganha dinheiro. Bota-se metade do artigo fora. Onde é que a gente ganha dinheiro para pagar o que eles querem? Dizem que vamos pagar o mesmo e passados dois anos começa a subir. Vindo para aqui de novo, ainda sobe mais. Não, não. Estar a trabalhar para os outros, não. Vou com pena, que eu gosto disto, mas a gente, não podendo, não fica.

Eu tenho saudades disto. E toda a gente me vê aqui. E falam comigo

Amélia Malheiro, 85 anos

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Estou aqui sentada, junto às flores secas, que era o que eu vendia. A minha nora Mónica tomou conta do meu lugar e vende umas coisas para os turistas, o que é que ia fazer? Isto já não se vendia. Vim de Ponte de Lima para servir em casa de uns patrões e ainda não tinha dez anos quando vim para aqui vender flores, a pé, de Serzedo, em Gaia. Nem podia com o carreto. O que a vida era… Louvado seja Deus, o povo nem se acredita! Naquela altura era só carros de bois e cavalos e eu sempre a pé. Não sabia ler, mas ninguém me enganava nas contas. Pousava as flores onde houvesse um espaço vazio (não se podia vender junto às hortaliças) e depois levava o dinheiro aos patrões. Com 16, 17 anos, saí de casa deles e vim para aqui por minha conta. Fiquei sempre aqui. Tanto vendia hortaliça como flores como qualquer coisa. Fui-me criando sempre aqui. E estava cá todo o dia. Tive seis filhos, um morreu, e todos foram criados aqui. Um deles foi criado ali com uma caixa. Eram umas caixas de madeira compridas, onde o deitava, e metia um pau por baixo, para ela não fechar. Outra foi criada acolá debaixo, na barraca do pão. Estava por baixo, numa alcofa e outro dormia na parte de cima. Eram todos muito amigos dos meus filhos, sabiam de quem eram, vinham fazer festinhas. Isto era muito rigoroso, com uma disciplina muito grande, e não se podia cozinhar, mas eu cozinhava para os meus filhinhos e para dar de comer ao menino de uma carrejona que estava numa giguinha. Ainda me veio visitar, com 50 e tal anos. Todos os dias venho e fico aqui sentada porque tenho saudades disto. Eu tenho saudades disto. E toda a gente me vê aqui. E falam comigo. Até o mercado fechar, venho com a minha nora. Eu queria é que eles dessem o meu lugar ao meu filho, que está a trabalhar fora, e arranjassem outro para a minha nora. Mas não deixam. Eu não acho bem, mas quem manda é a câmara. Quem me dera vê-lo arranjadinho, ainda.

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