Um hipotético cidadão de um hipotético país regressado de umas magras férias estropiadas por medidas de austeridade e querendo alhear-se de nova resolução governamental que o vai atingir de mansinho, em suaves prestações mensais, poderia gostar de ver, até pela analogia encontrada no título, “Vidas Inquietas”, um filme de 1952, do mesmo Otto Preminger do nosso conhecido “Laura” (1944). A inquietude do título é portuguesa e mais actual do que nunca, como sabemos, mas o original é o mais poético “Angel Face”.
Cuidado com a poesia, principalmente quando nos atinge pelas costas — o que poderia ser uma citação de uma sensata figura pública é apenas, lamentavelmente, uma constatação e um aviso, ainda para mais em tempo de figuras públicas ocas, boçais e ignorantes.
A cara angelical desta história, se é que a é, é interpretada por Jean Simmons (“O Egípcio”, de Michael Curtiz, “A Túnica”, de Henry Koster, “Spartacus”, de Stanley Kubrick), cuja beleza fatal talvez nos surja agora perdida na estética de outros tempos, mas cuja astúcia e manipulação se percebem ainda nos gestos e nas expressões. Uma bela aranha tecendo a sua teia, mas uma aranha com pai, madrasta rica, cozinheira e mordomo, que toca piano e anda num carro descapotável digno de um jogador de futebol, daqueles que nunca foram a cinco tostões a dúzia (o carro...).
Até que um dia, enquanto toca (já que não faz mais nada), dá por um tripulante de uma ambulância feito espectador na sua sala, um dos dois que tinham acorrido a uma chamada de emergência para socorrer uma vítima de acidente ou de tentativa de suicídio. O técnico de saúde-espectador é Robert Mitchum, mais ou menos do tamanho e da forma do piano de cauda, imaginado na vertical, mas enfiado numa constrangedora bata de trespasse que tranquilamente faria passar o “técnico de saúde” por um “cortador de carnes verdes” a caminho do respectivo talho.
Bem sei que esta descrição não é nada auspiciosa, ou talvez seja auspiciosa mas nada competente, mas, leitores, nada temam, porque lá está o Otto Preminger para não se deixar intimidar com minudências e, passando sobre tudo isso, construir uma narrativa poderosa, envolvente, espicaçante, que levará a maioria da assistência àqueles prados verdejantes de onde não se quer já sair, a não ser, talvez, para ir ao quarto de banho, e onde já não se pensa nada, a não ser talvez, no caso de já se ter uma execução fiscal à perna ou, porventura, os dentes surpreendentemente afiados do cão manso do vizinho, aquele que não faz mal nenhum a ninguém.
Há alguns aspectos intrigantes no filme que nunca chegam a ter resposta, tal como nas biografias dos multimilionários aqueles pormenores de como enriqueceram verdadeiramente, mas não se pode ter tudo (eles podem). Por exemplo, por que raio haveria alguém em seu perfeito juízo de inventar uma desculpa para não jantar com a namorada e ir sair com Jean Simmons quando a namorada era alguém com o aspecto saudável de Mona Freeman. Mas, sendo este um filme de “suspense”, é até artístico conseguir manter este tipo de “suspense” para além do final do filme. E que final! (não, não vou revelar, e as revistas à venda nos quiosques também não sabem). Arranjem o DVD e apreciem como o passado continua a dar-nos lições de fazer cinema. Principalmente no género do “filme negro antifisco”.