De volta ao “mestre dos espaços exíguos”, tal como lhe chamámos na crónica dedicada a “Janela Indiscreta”, acrescentamos mais este exemplo de perícia e arte de prender o espectador sem o recurso, por exemplo, ao espectáculo dos cenários naturais, às sequências da vida exterior à casa ou às perseguições de automóveis. Em "A Corda", de Alfred Hitchcock, o máximo que vemos do exterior do apartamento onde decorre toda a acção é a sequência do genérico de abertura, filmado do lado de fora da grande janela panorâmica que domina a sala de estar, de onde assistiremos ao cair da noite, com vista para o horizonte de prédios e céu. Essa sequência de introdução, prévia ao início da história, serve para dar um ar de mundo exterior, de vida normal que nos vai faltar durante o resto do filme, mas também uma possibilidade de o realizador cumprir um dos seus rituais mais esperados: a sua aparição nos seus próprios filmes. E ali está ele, caminhando ao longo da rua, acompanhado de uma mulher.
Fundando a sua própria casa produtora — a Transatlantic Pictures — Hitchcock pôde filmar uma peça de teatro, dando-se ao trabalho inovador de filmar no mesmo cenário, numa sequência temporal o mais aproximada possível ao “tempo real” de que agora se fala. Ou seja, para rodar uma longa-metragem como o público menos informado destas questões práticas imagina que é rodada, o realizador, os actores e toda a equipa técnica tiveram de empreender uma experiência pioneira e desafiadora que envolveu a remoção e reposição alternadas de paredes, mobiliário ou outros adereços em pleno decurso da acção, além de obrigar a soluções visuais para permitir a substituição das bobinas de filme das câmaras, que se esgotavam, na época, a cada 10 minutos (por isso é que a câmara se movimenta em direcção às costas das personagens, escurecendo a imagem, para logo recuar e prosseguir a cena). Quantos subterfúgios para se conseguir aparentar a falta de subterfúgios...
Adaptada por Hume Cronyn (actor em “Mentira” ou “Um Barco e Nove Destinos”), a peça de teatro de Patrick Hamilton baseada num caso real passado nos Estados Unidos com dois jovens de famílias ricas na década de 1920 teve argumento final de Arthur Laurents e tem no seu centro a influência que as ideias propagadas por um professor inspirado por Nietzsche (James Stewart) teve sobre dois dos seus ex-alunos (John Dall e Farley Granger). Usufruindo do tempo livre das suas vidas privilegiadas, os dois jovens decidem – ou, melhor, um deles convicto, o outro renitente – pôr em prática um “crime recreativo” que comprove o seu direito de seres superiores a pairar sobre os conceitos do bem e do mal, dispondo da vida dos seus “inferiores”. O conceito continua actual, atendendo ao modo como muitos condutores se comportam quando circulam ou mesmo quando estacionam os seus carrinhos... A habilidade de Hitchcock em entreter e intrigar enquanto trata de um exercício particularmente abjecto por parte de quem despreza os outros e “não tem nada que fazer”, em espaço limitado, é um tratado cinematográfico em si mesmo. Vejam lá se não é assim...
E para quem não reparou, entre Janet e o seu ex-namorado, quando se preparam para deixar o apartamento, o anúncio vermelho luminoso que pisca ao longe é a caricatura de Hitchcock, numa segunda aparição...