Catarina Martins: “Governo desinvestiu na cultura e está contente por isso”
Cultura representa 0,1% do Orçamento do Estado. Catarina Martins, deputada do Bloco de Esquerda, fala de uma “opção ideológica” do Governo PSD-CDS
Cavaco Silva, actual Presidente da República, era primeiro-ministro, Catarina Martins, actual deputada do Bloco de Esquerda, estudante na Universidade de Coimbra. Estávamos na década de 90 e vivia-se uma acesa guerra contra a implementação do regime de propinas no ensino superior. No Centro Cultural de Belém, o então ministro da educação, Couto dos Santos, não pôde evitar os protestos: quatro estudantes baixaram as calças e mostraram uma mensagem gravada nas nádegas: “Não pago.”
A luta estudantil da década de 90 não marcou o primeiro envolvimento político da deputada bloquista Catarina Martins, mas foi provavelmente o primeiro grande momento político que viveu. Por muitos anos fez política assim – fora dos partidos, como independente e pensadora, em activismos, em associações. A filiação veio depois. Até ter sido eleita pelo Bloco de Esquerda para a Assembleia da República (AR), em 2009, como independente.
Levou-a ao parlamento a luta de uma vida: uma política cultural mais estruturada. Pela cultura deixou (temporariamente) os palcos onde fazia teatro, como actriz e encenadora. “Não é possível fazer as duas coisas ao mesmo tempo”, diz a "deputada-actriz" ou a "actriz-deputada" (a bloquista não sabe com que binómio se identifica mais).
No parlamento, o enredo é outro. Catarina Martins teme que, com os cortes no orçamento da cultura, estejamos a caminhar para “o fim da profissionalização nas artes e na cultura”: “O que estamos a dizer é que se isto continua assim em muito pouco tempo vai ser impossível ser profissional das artes em Portugal.”
Cultura representa 0,1% do OE
A política de austeridade e a crise não podem ser justificação para os "cortes de 75%" no Orçamento do Estado (OE) para a cultura entre 2002 e 2012. A cultura representa actualmente 0,1% do OE: “É tão irrelevante que mesmo que fosse duplicado, do ponto de vista de Orçamento do Estado, nem se percebia. O buraco do BPN já nos levou o equivalente a 40 anos de investimento do Estado central na cultura.”
É por isso que Catarina Martins fala de uma “opção ideológica”. Resumo numa frase: “O poder tem medo da cultura.” Na verdade, atenta, a ausência de “políticas públicas estruturadas” vem antes do Governo de Passos Coelho. O “desinvestimento” já era uma realidade quando a deputada chegou ao Parlamento, em 2009, com José Socrates como primeiro-ministro.
O que distingue os dois executivos? “Este Governo desinvestiu na cultura e está contente por isso. Se no Governo do PS existiu este desinvestimento mas, pelo menos, no discurso público havia a ideia de que alguma coisa estava mal, o actual Governo não diz que alguma coisa está mal. Pelo contrário, tem um discurso perigoso. Diz que quer libertar as artes do Estado, como se [o facto de] o Estado dar condições às pessoas para trabalharem fosse determinar aquilo que devem fazer.”
A responsabilidade de “garantir condições para criar” é algo de que o Governo PSD-CDS se demitiu. “Acha que é possível viver-se do mercado”, lamenta, ainda mais porque a cultura "tem uma grande capacidade de ser reprodutiva na economia": "Há estudos que dizem que, na altura em que Portugal investia 0,4% do Orçamento na cultura, a cultura dava como retorno 2,8% do PIB."
Capitais europeias: "Festas amargas"
Este ano, Portugal junta duas capitais europeias - a da cultura (Guimarães) e a de Braga (juventude). Um acontecimento que a bloquista diz ter “algo ironicamente triste”, numa altura em que se "retira aos jovens qualquer capacidade de serem reconhecidamente vozes criadoras, artísticas, do ponto de vista nacional”. As "festas são boas", ressalva, mas num cenário em que não existem "perspectivas de futuro", são "festas muito amargas".
Para sobreviver, a cultura precisa de "políticas públicas estruturadas". Um cenário que não parece desenhar-se nos próximos tempos, num Governo que deixou cair o ministério com o argumento de que a cultura era uma "área transversal", antevê. É sintoma de algo bem claro: "A ideia de que a cultura precisa de pedir um favor para ter lugar no conselho de ministros, como se tivesse de viver no mundo das cunhas e do favor."