Poços, gatos, jazz e mulheres misteriosas. Dito assim pode soar um pouco redutor, mas a verdade é que a prosa do autor japonês Haruki Murakami ronda muito em torno destes temas ambíguos.
Muitas vezes literal mas, sobretudo metaforicamente, Murakami consegue chegar até nós através de longas narrativas sobre solidão, alienação e até crítica social sobre a geração actual do Japão, tão cheia de si mesma, de consumismo e de trabalho inconsequente.
Longas narrativas como as longas maratonas que o próprio Murakami costuma fazer na sua vida real como forma de ter força para “abrir a porta”, a porta que lhe permite chegar até à Outra Sala onde tudo acontece. Claro que precisa sempre de voltar, e é aí que entra a vida rotineira e regrada que o próprio não trocaria por nada.
À semelhança de um Salinger ou de um Kafka, Murakami vive uma vida controlada e nada boémia: acorda antes das cinco da manhã, trabalha durante cinco horas, corre de tarde, ouve música depois do jantar e deita-se às nove da noite.?
Prefere estar só, a fazer algo que o complete, do que a falar com alguém e certamente esta faceta da sua vida reflecte-se nas suas personagens: solitárias, pensativas e por vezes apáticas, engolidas pela monumentalidade da grande máquina que é a sociedade em que vivem, daí o isolamento. Procuram o poço onde estão inatingíveis e seguras, desistem de procurar pelo gato que nunca irá reaparecer e deixam-se embrenhar na escuridão total até passarem para o outro lado.
É compreensível o enorme sucesso de Murakami – especialmente entre os jovens – pois podem relacionar-se facilmente com as personagens retratadas. Talvez sem grandes esperanças, o que lhes resta é descerem ao metafórico poço e esperar que possam encontrar a porta para o outro lado.?
Num registo bastante kafkiano (tudo é completamente "normal" no universo de Murakami), com um humor requintado e vastas referências musicais e literárias (um piscar de olho ao seu passado como dono de um clube de jazz), a prosa de Murakami é única no mundo, possui um género próprio (Realismo Mágico) e atingiu já o estatuto de fenómeno de culto.?
No dia em que é publicado em Portugal o primeiro volume do seu novo romance "1Q84", a pergunta que se coloca é simples e paradoxalmente complexa: vamos novamente descer ao poço?