O livro de Jorge Marmelo que é como as bonecas russas
O autocarro é uma "espécie de máquina literária", onde se criam as histórias de "Uma Mentira Mil Vezes Repetida"
Há um homem solitário que decide que quer ser famoso. Um “livro grossíssimo” de 1200 páginas, passeado debaixo do braço nos transportes públicos, à espera de ser notado. Há um autor húngaro fugido da segunda Guerra Mundial, um belizenho que conta histórias ainda mais recuadas no tempo. E há o Porto, a glória ou a falta dela, o amor. Há de tudo, mas não há nada. É tudo inventado.
"Uma Mentira Mil Vezes Repetida", o último romance de Manuel Jorge Marmelo, é como as matrioscas, “em que se vai abrindo e vão saindo cada vez mais bonecas lá de dentro”, compara o autor. O narrador, homem solitário, inventa um livro. Inventa Oscar Shindinski, o autor da obra-prima "Cidade Conquistada", que acredita estar amaldiçoado por Marcos Sacatepequez, que escreve o episódio com que o livro abre. As histórias são desfiadas dentro de um autocarro, onde o narrador se senta e espera a glória.
Espera que o notem. Ou que ao menos notem o livro que carrega: um calhamaço, sem nada lá dentro – folhas impressas de apontamentos da internet, despropositadamente alinhadas -, inventado à medida que o abordam. E preenchido com questões da actualidade. Com reflexões.
Sobre a intolerância
Este é um livro sobre a intolerância – “Contra os judeus, primeiro, mas depois a intolerância como traço comum de todos os grandes problemas da actualidade. A que está na origem das guerras religiosas, a intolerância económica, a racial”. Manuel Jorge Marmelo quis fazer um livro sobre isto. Mas fez mais: deixou uma reflexão sobre a celebridade, a necessidade dela (ainda que, mais do que a celebridade, o que o narrador procura, acredita Marmelo, seja companhia), e sobre a literatura (pode ou não o livro ser mais do que a vida?).
É um mundo de mentira, mas não de mentirosos: no fundo, é sobre a solidão, sobre o anonimato indesejado, sobre um homem em busca de alguém que o ouça e o faça sentir gente. Quantos assim passeiam nos transportes públicos diariamente? Mais do que uma inspiração, o autocarro “é uma espécie de máquina literária, produtora de todas as histórias que estão dentro do livro”, conta Jorge Marmelo. “Um pouco como a Madeleine do Proust, aqui é o autocarro o suscitador das histórias.”
Algumas das histórias foram transportadas para "Uma Mentira Mil Vezes Repetida" do blogue que o autor portuense escreve - “São apontamentos da realidade, que deram o colorido do autocarro”, explica Manuel Jorge Marmelo. Foram (e são: a rúbrica “Crónicas do Autocarro” continua a ser actualizada) escritas durante as viagens do próprio autor, também utente dos transportes públicos. Um livro auto-biográfico? “Tem muitas das minhas reflexões sobre o mundo e sobre a literatura. Mas sou um bocadinho menos parvo do que o narrador do livro”.