Há uma exposição permanente no National Museum of American History, do Instituto Smithsonian, dedicado à “não oficial mas importante posição da primeira-dama”. Dos mais de 20 vestidos usados durante vários bailes da tomada de posse, o mais recente é o de Melania Trump, que na quinta-feira celebrou 48 anos. Quem o desenhou foi o criador francês Hervé Pierre, que esteve na semana passada em Lisboa, na conferência sobre luxo da Condé Nast, para falar sobre a definição de “power dressing” – um conceito que resume uma forma de vestir associada a posições de decisão e poder.
“Tenho de dizer, eu não acho que tenha a ver com as roupas. Tem a ver com a atitude da mulher”, começa por dizer ao PÚBLICO. Sentado num sofá durante um dos intervalos da conferência, o criador natural de França que obteve cidadania norte-americana enverga pelo segundo dia consecutivo um fato claro em tons de bege, tendo comentado no dia anterior que normalmente as cores escuras costumam transmitir um sinal de poder no vestuário masculino. Leva também na lapela uma margarida, um símbolo que utiliza há décadas.
Para o criador, o próprio conceito de power dressing é “quase algo que tirámos dos anos 1980”. Quando surgiu o fato para mulheres "foi algo que teve de se usar para ser credível no ambiente de trabalho”, mas hoje esse já não é o caso, comenta.
Reconhece, ainda assim, que no que toca a eventos formais e a certos ambientes há um desequilíbrio entre os sexos, no sentido em que os homens têm um uniforme que simboliza universalmente a ideia de poder: o fato e gravata. Mas nem sempre foi assim, lembra: “Nos séculos XVII e XVIII, homens e mulheres eram igualmente extravagantes”. Isso até nascer o fato formal. “[Hoje] os homens, infelizmente, não são como os pássaros”, brinca, referindo-se a animais como o pavão.
Os códigos de roupa podem ser mais rígidos, por exemplo em locais como Wall Street, mas Hervé acredita veementemente que estes irão esmorecer, algures nos próximos 30 anos. Porquê? “Porque vejo como evoluímos”, responde, exemplificando como Sophie Hackford, uma das palestrantes, subiu ao palco no primeiro dia, com um fato de pele bordeaux e um top azul-turquesa. “Há 20 anos iria parecer um palhaço. Nem pensamos nisso hoje… Ela estava fabulosa e poderosa.”, comenta o criador.
Pierre Hervé vive em Nova Iorque há 22 anos e já vestiu uma miríade de primeiras-damas – desde Laura Bush a Michelle Obama –, sempre atrás de grandes marcas como Carolina Herrera e Oscar de la Renta. Agora trabalha para Melania Trump: além de desenhar algumas peças, assiste a ex-modelo com as suas escolhas de roupa.
“O meu papel é vestir a primeira-dama e aconselhá-la – não sou um stylist; sou um consultor e ela é firme em relação isso”, disse no final do ano passado a Suzy Menkes, editora da Condé Nast International e anfitriã da conferência em Lisboa. “Quem é que, como mulher livre, vai deixar que lhe digam o que vestir? É uma conversa, uma colaboração. Sem intelectualizar, o meu aconselhamento é respeitoso”.
Talvez por ser uma uma figura algo enigmática, que raramente fala publicamente, cada passo de Melania costuma ser analisado ao microscópio. Durante a primeira visita de Donald Trump ao estrangeiro enquanto Presidente, a escolha de não usar hijab na Arábia Saudita e de usar um véu no Vaticano mereceu-lhe comparações a Michelle Obama – já que Trump tinha criticado a ex-primeira-dama no passado, por ter tomado exactamente as mesmas decisões.
Quando acompanhou o marido à Ásia, em Novembro do ano passado, a escolha de criadores europeus acima de americanos levou muitos a comentar que a primeira-dama se afastava da subtileza diplomática de algumas das suas antecessoras, como Michelle Obama, que escolhia criadores nacionais, reconhecendo o país onde estava com pistas subtis. “Tal como a abordagem arrojada do seu marido à diplomacia, Melania está a fazer o estilo primeira-dama ao ritmo do seu próprio tambor", escreveu na altura o Telegraph.
Hervé Pierre já se habituou ao escrutínio constante relativamente ao guarda-roupa daquela que é “uma das mulheres mais fotografadas do mundo”, mas confessa que considera “assustador”, quando levado ao exagero. Durante o seu tempo no palco da conferência da Condé Nast, partilhou alguns episódios anedóticos: “Vesti-a [Melania Trump] com riscas e houve pessoas que disseram que parecia que ela estava na prisão, foi um desastre”.
“Nunca vais vencer a batalha. Porque vais ter sempre pessoas que vão criticar. Por isso quando decides, divides”, desabafa ao PÚBLICO.
No rescaldo das eleições presidenciais de 2016, houve quem no mundo da moda quisesse incitar um boicote à futura primeira-dama. A criadora Sophie Theallet – que vestiu Michelle Obama durante a administração do marido – publicou uma carta aberta a anunciar que se recusaria a vestir a nova primeira-dama e incentivando outros criadores a fazer o mesmo. "A retórica de racismo, sexismo e xenofobia desencadeada pela sua campanha [de Donald Trump] é incompatível com os valores que partilhamos e pelos quais regemos a nossa vida", escreveu.
Outros designers como Marc Jacobs, Derek Lam e Zac Posen assumiram a mesma postura. Mesmo que não façam fila para trabalhar com a primeira-dama, não há muito que os criadores possam fazer para que esta vista as suas peças. Quando Melania vestiu um fato Michael Kors, no início do mandato de Trump, durante uma sessão do Congresso, o criador norte-americano veio a público comentar que Melania era uma cliente de longa data da sua boutique de Nova Iorque, dando assim a entender que não tinha emprestado aquela roupa.
Já a dupla italiana por detrás da Dolce & Gabbana mostrou-se, desde cedo, satisfeita de cada vez que Melania usava as suas roupas, com elogios e agradecimentos à primeira-dama. Anna Wintour deu a entender que não iria deixar de pôr Melania Trump na capa da Vogue por causa das políticas do seu marido. “Temos uma tradição de retratar sempre, seja quem for, a primeira-dama na Vogue e eu não consigo imaginar que seja diferente desta vez”, disse a directora da revista de moda em entrevista ao Wall Street Journal.
“É a beleza de viver num país democrático. Temos a escolha", comenta Hervé Pierre. "Eu respeito a escolha de pessoas que disseram que não o queriam fazer. Mas é também uma escolha minha. Além disso é a primeira-dama que estou a vestir, vestiria todas elas. Aconteceu assim, não vou parar só porque a administração [de Donald Trump] é altamente criticada. Seria tonto.”
Desligar o telefone na cara da Air Force One
Só poderia ser uma brincadeira, terá pensado Hervé Pierre, quando recebeu um telefonema do Air Force 1. Por isso respondeu “ok, sou o Papa” e desligou. Acontece que do outro lado da linha estava Laura Bush, uma das várias primeiras-damas que Pierre já vestiu.
Em cada caso “entras em contacto com uma nova personalidade”, explica. Quando sugeriu que Hillary Clinton (na altura primeira-dama) trocasse calças por uma saia em lápis, esta sugeriu-lhe, em tom de brincadeira, que experimentasse pôr uma saia e uns Manolo Blahnik e subir umas escadas. Com Laura Bush “em dois segundos estávamos a falar sobre fazer bolos”, contou na conferência.
O que é certo é que o criador, que fez a sua carreira nas marcas de outros – passando, ainda novo, pela Balmain, em Paris – está agora a dar os primeiros passos a solo. No final do ano passado, lançou uma pequena linha de 12 vestidos pretos, em parceria com Nicolas Caito. "Sem ela [Melania Trump], acredito que ainda estaria escondido; seria um 'escritor-fantasma'".